A Fundação Ford, entidade cuja missão é propagar a "justiça social" ao redor do planeta, distribuiu US$ 180 milhões no Brasil desde 2006. Levando em conta o câmbio de cada ano, a soma equivale a aproximadamente R$ 492 milhões. Os dados fazem parte de um levantamento exclusivo da Gazeta do Povo com base nas planilhas da organização. Em um período de 15 anos, 293 entidades receberam recursos da Fundação Ford para atuar no Brasil. A grande maioria dos beneficiários tem sede no território brasileiro, embora algumas entidades internacionais também estejam na lista.
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Entre os destinatários dos recursos da Fundação Ford, estão a Associação Brasileira de Magistrados (AMB), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Ministério Público do Pará, 24 universidades - públicas e particulares -, entre outros.
Embora não seja ilegal, o repasse de recursos gera questionamentos por causa da grande desproporção financeira e pelo potencial de que uma organização estrangeira tenha uma influência indevida sobre os rumos do debate público no Brasil. Além disso, temas como a demarcação de terras indígenas e a reforma agrária têm um potencial de impacto significativo sobre a participação do Brasil no mercado global, já que o agronegócio é o principal eixo de exportações brasileiro.
Críticas semelhantes são feitas à da atuação da Open Society, do bilionário George Soros. A partir de outro levantamento exclusivo, reportagem da Gazeta do Povo mostrou que Soros investiu R$ 117 milhões em entidades no Brasil.
A Fundação Ford tem uma predileção pelo financiamento de projetos da pauta que, pelos critérios americanos, pode ser definida como “progressista”. Isto inclui a legalização do aborto e a propagação de ideias radicais no campo racial.
A história da Fundação Ford está ligada à da fabricante de veículos. A organização teve início em 1936, com recursos de Edsel Ford, filho de Henry Ford. Desde os anos 1950, entretanto, a fundação é independente do grupo Ford. O último membro da família Ford no conselho da fundação deixou o cargo em 1976.
Nem sempre o alinhamento com as causas de esquerda foi claro. De início, a prioridade eram ações de promoção da cultura e de combate à pobreza. Em 1952, por exemplo, recursos da fundação financiaram o surgimento de programas infantis educacionais para a televisão - um deles, a Vila Sésamo. Nas últimas décadas, entretanto, conforme a agenda progressista se tornava mais radical, a fundação acompanhou essa tendência.
Globalmente, a Fundação Ford repassou US$ 8,2 bilhões desde 2006, distribuídos a 6.777 organizações. “Acreditamos que os movimentos sociais são construídos sobre liderança individual, instituições fortes e ideias inovadoras, por vezes de alto risco”, diz a fundação em sua página na internet.
Principal beneficiada: foco na Amazônia
As cinco organizações mais beneficiadas pela Fundação Ford no Brasil desde 2006 foram a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (US$ 5,6 milhões), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (US$ 5,2 milhões), o Instituto Socioambiental (ISA) (US$ 4 milhões), a Justiça Global ( US$ 3,8 milhões) e a Terra de Direitos (US$ 3,5 milhões).
A Federação de Órgãos para Assistência Social (Fase) é uma entidade sediada no Rio de Janeiro e que tem como objetivo "a construção de uma sociedade democrática e atuante em favor de alternativas ao modelo de desenvolvimento vigente". A maior parte das doações feitas pela Fundação Ford à entidade está relacionada à região amazônica. Em 2009, por exemplo, a organização americana enviou US$ 250 mil com o objetivo de "estabelecer o Fundo dos Povos Indígenas do Xingu". Em 2020, a Fase obteve sua maior doação até aqui: foram US$ 2 milhões para "apoio geral" na busca por "justiça social e ambiental".
A UFRJ, por sua vez, obteve 26 repasses da Fundação Ford desde 2006. Boa parte deles foram aplicados em projetos ligados à questão racial e aos povos indígenas. A instituição, aliás, não foi a única universidade financiada pela Fundação Ford. A lista inclui um total de 24 instituições de ensino superior. A maioria é de universidades federais, mas também houve repasses para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que recebeu US$ 219 mil em 2013 para conduzir uma pesquisa sobre os serviços de proteção aos direitos humanos nas universidades brasileiras.
O Instituto Socioambiental, terceiro maior beneficiado, é outra organização que atua na Amazônia. Um dos repasses feitos pela Fundação Ford - de US$ 300 mil, em 2010, foi usado para "preparar um atlas das terras dos povos indígenas e de terras protegidas". Em 2013, o instituto obteve outros US$ 200 mil com o objetivo de "realizar consultas públicas e workshops" de forma a "construir narrativas de povos tradicionais para influenciar a mídia".
A Justiça Global, quarto lugar na lista de maiores beneficiados, recebeu recursos da Fundação Ford para atuar contra "violações de direitos humanos" no Brasil. Já a Terra de Direitos, quinta colocada, atua sobretudo na resolução de conflitos fundiários - por vezes, em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Agenda pró-aborto
A ong Católicas pelo Direito de Decidir, cuja missão é defender a legalização total do aborto no Brasil, recebeu doações em quatro anos distintos (2007, 2008, 2010 e 2015) da Fundação Ford. Foram US$ 900 mil ao todo.
Em um desses anos, o objetivo era promover "os direitos sexuais e reprodutivos no Brasil e na América Latina". O termo “direitos reprodutivos”, neste caso, refere-se ao aborto. Apesar do nome, a Católicas pelo Direito de Decidir não tem qualquer ligação com a Igreja Católica. Recentemente, o grupo perdeu, em primeira instância, uma ação que questionava o uso do termo “Católicas” em seu nome.
Outras organizações com princípios semelhantes foram financiadas pela Fundação Ford. Entre elas, o Anis - Instituto de Bioética e o CFEMEA - Centro Feminista de Estudos e Assessoria.
Já a Central Única dos Trabalhadores (CUT), historicamente ligada ao PT, recebeu US$ 150 mil em 2014 para “pesquisa aplicada, networking e defesa da transparência e prestação de contas relacionada à Iniciativa dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)”.
Até mesmo o Ministério Público do Pará está na lista da Fundação Ford. Segundo a planilha da fundação, o órgão obteve US$ 500 mil para implementar uma câmara de resolução de conflitos fundiários na Amazônia.
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), principal entidade representativa dos juízes no país, também integra a lista: a entidade obteve US$ 78 mil para produzir e publicar uma revista sobre direitos humanos, com foco na população negra.
Outro lado
O Ministério Público do Pará afirmou à Gazeta do Povo que “a Fundação Ford financia o programa de gestão de conflitos territoriais rurais do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA)”. Segundo o órgão, esse projeto tem dois produtos: o SIG-Fundiário (SIG-F) e as Câmaras de Tratamento de Conflitos Agrários em Castanhal e Santarém. O SIG-F promove a unificação "de informações de registros públicos imobiliários rurais". Já as duas Câmaras de Tratamento de Conflitos Agrários "funcionam de forma preventiva para buscar a solução autocompositiva de conflitos entre as partes envolvidas".
A Associação dos Magistrados Brasileiros disse que os recursos foram aplicados exclusivamente na publicação da revista “Cultura e Direitos Humanos”. “A publicação teve tiragem de 50 mil exemplares, que foram distribuídos a magistrados, instituições públicas e privadas de ensino, agentes e entidades culturais, jornalistas e meios de comunicação”, afirmou a entidade, em nota.
A Fase, que existe desde 1961, afirma receber apoio da Fundação Ford desde 1982. A organização brasileira afirmou à Gazeta do Povo que “os recursos são aplicados de forma autônoma, transparente e democrática, conforme assegura o estatuto da FASE. As prestações de contas e outros documentos contábeis estão disponíveis na nossa página na internet”.
O Instituto Socioambiental também se pronunciou: “Ao longo dos anos o apoio da Fundação Ford, assim como de outros financiadores, permitiram que o ISA produzisse análises jurídicas, reportagens, vídeos, notas técnicas, campanhas, publicações, desenvolvesse projetos e apoiasse parceiros em temas de interesse socioambiental, conforme relatórios disponíveis no site do ISA https://www.socioambiental.org/pt-br/o-isa/transparencia”.
A ong Católicas pelo Direito de Decidir afirmou, em nota, que a missão da entidade é “ promover e qualificar o debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no espaço público brasileiro”. O texto acrescenta: “Para tanto, ao longo da jornada, houve apoio e parcerias de diversas entidades nacionais e internacionais. Diferente do enfoque delimitado, o objetivo de nossa organização não é desequilibrar o debate público, mas sim fortalecê-lo, dando voz e ressonância a bandeiras de lutas históricas, e muitas vezes invisibilizadas, das meninas e mulheres brasileiras.”
A assessoria de imprensa da CUT afirmou que os recursos recebidos para o projeto sobre os BRICS "foram utilizados, conforme previsto em contrato, para pagamento de salários e assessorias específicas para o desenvolvimento do projeto, dois seminários com participação de representantes dos países envolvidos, atividades externas, estudos e pesquisas."
A Terra de Direitos, por sua vez, disse que "tem total autonomia na sua atuação, uma atuação alinhada e pautada na defesa dos direitos humanos e enfrentamento das desigualdades."
A Universidade Federal do Pará informou que os recursos recebidos da Fundação Ford não passam pela administração da instituição de ensino, mas são concedidos diretamente "a pesquisadores com projetos que atuam junto a comunidades vulneráveis."
A Fundação Ford e as demais organizações citadas no texto desta reportagem também foram procuradas pela Gazeta do Povo, mas não se pronunciaram até a publicação da matéria.
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