Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não chegaram a um veredito sobre a descriminalização do porte de pequenas quantias de drogas para consumo individual. Três votaram a favor – oito ainda não votaram. A dúvida não é um privilégio dos homens e mulheres de toga. Homens e mulheres de jaleco branco – que atuam na saúde – também se dividem sobre o efeito da medida, caso aprovada. Seus temores nascem da prática, na qual se deparam todos os dias com o alto preço cobrado pelo uso de entorpecentes.
Pode não haver provas científicas, mas sobram evidências de que o uso de drogas na adolescência seja um gatilho para a esquizofrenia – entre os que são propensos a essa doença psíquica. O assunto é tratado com dedos pelos profissionais da psiquiatria. “Alguns estudos epidemiológicos dizem que pessoas que fazem uso de cannabis têm mais risco de desenvolver quadros de esquizofrenia. O problema é atribuir causalidade entre uma coisa e outra”, explica o psiquiatra Marcelo Kimati, 43 anos, diretor de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
A possibilidade da descriminalização, contudo, escancara essa conversa. O que se pergunta é se com menos repressão, mais jovens vão provar maconha ou cocaína. Se a médio prazo vai se criar um passivo para o sistema de saúde pública. Eis o ponto.
Um dos alertas veio da médica Ana Cecília Marques, da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead). Para ela, a depender da decisão do STF, haverá mais experimentação, e, por tabela, mais dependência, provocada por uma espécie de “oba-oba, agora pode”. Só uma campanha prévia de esclarecimento poderia evitar um estrago geral.
“O debate da descriminalização é um debate menor. O debate maior é como criar políticas para usuários de drogas, independentemente de serem legais ou não”, defende Kimati. No que é seguido. “Não está escrito na testa: ‘Você está sorteado. Vai se tornar um dependente’. Aprovar a descriminalização é lançar mais gente numa loteria”, observa a psicóloga Kátia Akemi Nedopetalski, da SMS. O trabalho dela é fazer a ponte entre pacientes atendidos nas 109 unidades de saúde e os 12 Caps (Centro de Atenção Psicossocial) da prefeitura.
“A descriminalização deve afetar a saúde pública, sim”, observa o psiquiatra Fábio Uesu, 35, que atua na Unidade de Saúde São Domingos, no Cajuru. O local atende na média 110 pacientes por dia – estima-se que 30% desses tenham alguma relação com sofrimento mental, não raro causado por uso de entorpecentes. Para Uesu, a maconha – droga que ficou no centro da discussão– pode aumentar o índice de transtornos mentais. “Afeta funções cognitivas, facilita o esquecimento. Deixa lerdo. Seu uso está longe de ser uma questão de foro íntimo”.
No início dos anos 2000, dados da Secretaria de Saúde indicavam que os “problemas mentais” eram o terceiro maior motivo de consultas nas unidades. Os primeiros eram a hipertensão e a diabete – duas epidemias mundiais. Do “guarda-chuva” dos problemas mentais faziam parte a depressão, bipolaridade, alcoolismo e drogadição. Mais de uma década depois, o quadro parece menos sinistro, mas não menos preocupante.
Ano passado, saíram das unidades 125.403 diagnósticos de transtorno mental – a sexta maior incidência e a sétima responsável pelas internações, com 5.204 casos. Profissionais consultados, contudo, admitem que os malefícios causados pela drogadição repercutem em todas as outras enfermidades.
“Estima-se que haja 100 mil dependentes químicos em Curitiba – e isso inclui os dependentes de álcool. Essas pessoas não estão se tratando do problema ou mesmo se preocupando com isso”, explica o psiquiatra Marcelo Kimati, sobre um mal que atinge, por baixo, 1 a cada 17 moradores. Muitos deles podem estar se tratando de depressão, por exemplo, sem que o uso de drogas tenha sido informado.