As críticas à conduta do delegado titular da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informação, primeiro responsável pela investigação de um estupro coletivo cometido contra uma adolescente no Rio de Janeiro, reacendeu o debate sobre a eficiência da rede de assistência às vítimas desse tipo de crime e à capacitação dos profissionais. Em entrevistas, a adolescente afirmou ter se sentido desrespeitada.
Apoio aumenta denúncias
Em Curitiba, mulheres maiores de 18 anos vítimas de estupro podem buscar apoio no Núcleo de Apoio à Vítima de Estupro (Naves), do Ministério Público do Paraná (MP-PR). Criado em 2013, o núcleo é responsável por fazer a denúncia contra o agressor e acompanhar as investigações. Em paralelo, oferece apoio psicológico às vítimas.
Para chegar às mulheres, foi firmada uma parceria com as Polícias Civil e Militar, IML, Hospital de Clínicas e Hospital Evangélico para que as ocorrências de estupro sejam encaminhadas ao núcleo. Em dois anos, 265 mulheres passaram pelo Naves, dessas, 100 receberam o suporte psicológico.
Segundo a procuradora Rosângela Gaspari, coordenadora do Naves, desde que o núcleo foi criado a adesão à representação criminal, ou seja, a formalização da denúncia, triplicou. “Quando a vítima tem mais de 18 anos é preciso de uma representação criminal por parte da vítima. Sem isso, o MP não tem legitimidade para processar o criminoso. Muitas vítimas registram o BO, fazem o corpo delito, mas não fazem a denúncia. É problemático. Mas com o Naves, com o suporte, muitas mulheres passaram a ter coragem de fazer a denúncia”, conta.
São comuns os relatos de mulheres sobre o atendimento em delegacias especializadas. As reclamações mais comuns dizem respeito à falta de capacitação dos agentes e à culpabilização da vítima. Especialistas na área apontam que a precariedade do atendimento tem mais a ver com a sobrecarga e estrutura insuficiente do que com o protocolo em si. Ou seja, a Norma Técnica de Padronização das DEAMs (Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher) é adequada, o problema é executá-la plenamente.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2015, o Brasil registrou 47,6 mil denúncias de estupro e estupro de vulnerável; no Paraná, foram 3,9 mil denúncias, o que faz do estado o terceiro com maior número de ocorrências. Já Curitiba é a quinta capital com maior número de denúncias, atrás de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Manaus.
Estrutura e sobrecarga
O elevado número de vítimas e a natureza hedionda do crime desafiam a manutenção de uma rede de assistência integrada e capacitada.
No Paraná, vítimas de estupro são atendidas por uma rede de serviços que incluí delegacias especializadas (da Mulher e da Criança e do Adolescente), o Ministério Público, o Instituto Médico Legal e hospitais de referência.
O primeiro passo para que uma mulher vítima de estupro seja assistida adequadamente é o atendimento em delegacias especializadas – hoje, há apenas 18 delas em todo o estado. Nos municípios que não possuem delegacia especializada, as vítimas devem procurar as unidades locais, as quais deveriam ter uma equipe capacitada para o atendimento de mulheres em situação de violência – o que nem sempre ocorre.
As delegacias especializadas sofrem ainda com a sobrecarga – somente a de Curitiba acumula mais de 18 mil inquéritos policiais em andamento.
Rede de suporte para menores de idade é precária
Quando a vítima do estupro é criança ou adolescente, o registro é feito ao Nucria, núcleo da Polícia Civil do Paraná especializado em Curitiba. Nesses casos, a ação pública é incondicionada, ou seja, a denúncia contra o agressor não está condicionada à formalização da vítima – acontece independente de consentimento.
Hoje, a Promotoria de Justiça de Infrações Penais contra Crianças e Adolescentes do MPPR de Curitiba tem mais de três mil inquéritos e ações penais; 90% dos casos são de estupro de vulnerável.
O maior desafio, no entanto, segundo a promotora de justiça Tarcila Santos Teixeira, é oferecer uma rede de suporte para as vítimas.
“O sistema hoje não oferece nada para auxiliar a criança vítima de crime na superação do trauma. Existe uma rede de proteção que oferece atendimento para crianças e adolescentes vítimas de violência, mas que não atende de forma específica a essa demanda. Trata-se de uma demanda muito delicada e, por isso, é necessário um trabalho intensivo e especializado e direcionado”, observa.
Tarcila trabalha agora na elaboração de um projeto para a criação de um Centro Integrado para a Criança Vítima de Crime. O local reuniria todas as etapas do atendimento: delegacia, IML, hospital, promotoria e vara especializada. “A ideia é que se ofereça uma abordagem unificada.”
O mesmo se repete no Nucria, núcleo da Polícia Civil especializado em crimes contra crianças e adolescentes em Curitiba, onde, só em 2015, foram abertos 319 inquéritos para apurar denúncias de estupro de vulnerável.
Protocolos
A primeira recomendação para vítimas de estupro é que procurem um hospital de referência para o atendimento médico e a administração do coquetel de remédios antirretrovirais. Em Curitiba, o Hospital de Clínicas da UFPR e o Evangélico são os responsáveis por receber as vítimas e acionar um perito do IML, que irá até a unidade realizar o exame de corpo delito. Esse procedimento, no entanto, só é realizado quando a vítima procura o hospital em até 72 horas após o estupro. Depois desse prazo, deve buscar diretamente a Delegacia da Mulher.
Os procedimentos a serem adotados pelas delegacias especializadas estão definidos na Norma Técnica de Padronização das DEAMs (Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher). O primeiro contato com o policial é determinante para o desenrolar da queixa-crime e da investigação criminal. Um atendimento humanizado pressupõe policiais qualificados, com compreensão de violência de gênero e da legislação específica, que não minimizem ou coloquem em dúvida o relato da vítima.
Após o registro do Boletim de Ocorrência, a vítima deverá ser encaminhada para um local reservado para conversar com a escrivã da polícia. Logo depois são tomadas as providências legais: preenchimento do BO; coleta de provas; solicitação à Justiça, em prazo de 48 horas, de medida protetiva de urgência; encaminhamento ao exame de corpo de delito e a serviços de atendimento psicossociais.
Demora prejudica coleta de provas
O prazo para o registro da denúncia e consequente abertura de inquérito é de seis meses a partir do momento em que a vítima identifica o agressor, e não do momento do crime. No entanto, a titular da delegacia da mulher de Curitiba, Sâmia Coser, ressalta a importância de fazer o registro e a denúncia o mais rápido possível também devido às limitações da coleta de provas materiais.
“Dispomos de um espaço temporal curto para identificar substâncias, a presença de esperma e sinais de agressão física. Por exemplo, se a vítima fez uso de entorpecentes, em poucas horas posso não conseguir mais identificar essas substâncias. E muitos agressores utilizam a falta dessa prova para alegar que houve consentimento”, explica.
O mesmo vale para as provas de imagem, diz a delegada: câmeras de rua e estabelecimentos comerciais e residências não mantêm arquivos por mais de uma semana; da mesma forma, testemunhas são difíceis de localizar muito tempo depois.
Feita a denúncia, é instaurado um inquérito policial para apurar os fatos relatados pela mulher. Nessa etapa, a delegada determina os atos de investigação, como ouvir o acusado e testemunhas e coletar provas. Se a prática do crime for comprovada, o autor é indiciado e o inquérito é enviado ao Judiciário e ao Ministério Público, a quem cabe denunciar e processar o agressor. O Judiciário é responsável por sentenciar o caso.
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