Desde que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), passou a pesar a mão para banir das redes sociais canais, perfis ou contas inteiras de usuários que, segundo ele, “atacam” a democracia e as instituições, as empresas de tecnologia que operam as plataformas têm se alarmado. A maioria delas teme uma vigilância estatal pesada sobre o que seus usuários postam, o que imporia a elas o dever de um controle muito maior para restringir um número crescente e indefinido de conteúdos.
No caso mais relevante julgado recentemente, as principais “big techs” com filial no Brasil se insurgiram, em conjunto, contra a decisão de junho do ministro que bloqueou todas as contas do Partido da Causa Operária (PCO) – legenda da velha esquerda, mas alinhada ao ideário de liberdade da nova direita – no Twitter, Instagram, Facebook, Telegram, YouTube e TikTok.
Não se sabe ao certo como e por meio de quem chegou ao conhecimento de Moraes, no âmbito do famigerado inquérito das fake news, que tramita em sigilo, postagens do partido no Twitter defendendo, entre outras coisas, a “dissolução” do STF, em razão da promessa do ministro de cassar candidatos que divulgassem “fake news” nas eleições. “Em sanha por ditadura, skinhead de toga retalha o direito de expressão, e prepara um novo golpe nas eleições. A repressão aos direitos sempre se voltará contra os trabalhadores!”, postou o PCO.
Na decisão em que determinou o banimento do partido de todas as redes mais populares, Moraes ainda relacionou outros tuítes em que se criticava a “ditadura do TSE” e uma suposta ameaça de fraude nas eleições deste ano. Em pouco mais de duas páginas, Moraes afirmou que as publicações do PCO tinham “gravidade”, atingiam “a honorabilidade e a segurança” do STF e de seus ministros, insinuava prática de atos ilícitos por eles e que, por isso, era necessário adotar providências para “cessar a prática criminosa” e investigar o caso.
Ainda destacou que o partido estaria usando recursos públicos para impulsionar e propagar “declarações criminosas”, com “disseminação em massa de ataques escancarados e reiterados às instituições democráticas e ao próprio Estado Democrático de Direito, em total desrespeito aos parâmetros constitucionais que protegem a liberdade de expressão” – ele não detalhou, especificamente, que crimes estariam sendo cometidos e em quais postagens. Em geral, essa tipificação é indicada pelo Ministério Público ou pela Polícia Federal, que aparentemente não provocaram o STF sobre o caso do PCO – os órgãos não foram citados em nenhum momento.
Na semana passada, os ministros do STF julgaram, numa sessão virtual, seis recursos, apresentados por Twitter, Telegram, TikTok, Google (dona do YouTube) e Meta (grupo que controla Facebook e Instagram) contra a decisão de Moraes. De forma unânime, todas elas consideraram que o bloqueio de todos os canais, perfis e contas de uma pessoa ou de um partido é um ato de censura prévia, algo expressamente proibido pela Constituição, e também rechaçado com clareza pelo Marco Civil da Internet, em respeito à liberdade de expressão.
O Twitter citou o artigo 19, parágrafo 1º dessa lei, aprovada em 2014 e que regulamenta os direitos e deveres dos cidadãos e das plataformas no ambiente digital. O dispositivo estabelece claramente que é preciso haver uma “ordem judicial específica” para tornar indisponível algum conteúdo apontado como irregular. A ordem deverá conter, “sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material”.
O mesmo artigo diz que a regra visa “assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”. O artigo só permite a responsabilização de uma plataforma, por conteúdo irregular publicado por usuários, caso não adote providências para retirá-lo do ar “no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado”.
O argumento do Twitter e de várias outras plataformas é que o banimento de uma conta inteira retira do ar inúmeros conteúdos regulares já postados e sequer analisados pelo Judiciário, mas sobretudo publicações futuras, sob a presunção de que seriam ilegais – daí a caracterização da censura prévia, expressamente vedada pela Constituição.
“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, diz o artigo 5º, inciso IX da Carta. “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”, diz ainda o parágrafo 2º do artigo 220, segundo o qual a “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
Em seu recurso, o Twitter ainda chamou a atenção para o fato de a medida ser tomada logo antes do início do período eleitoral, quando partidos deveriam usufruir de plena liberdade para conquistar votos de eleitores na arena pública.
“O bloqueio integral do perfil do Partido da Causa Operária (PCO) na iminência do início do período eleitoral poderia violar, com a devida vênia, dispositivos constitucionais e a própria legislação infraconstitucional relativa à matéria, tendo em vista a possibilidade de caracterização de censura de conteúdo lícito existente nos mais de 20 mil tweets postados pelo usuário desde 2010 e, especialmente, de censura prévia de conteúdo futuro lícito, não necessariamente vinculado ao objeto do inquérito em curso”, afirmou a empresa.
O Google seguiu a mesma linha. “A remoção de um canal inteiro resultaria tanto no cerceamento genérico de discursos passados, sem nenhuma relação com o objeto da investigação, quanto na censura prévia de novos conteúdos sobre quaisquer temas, de forma incompatível com a Constituição e a jurisprudência histórica desse Eg. Supremo Tribunal Federal. No caso, a gravidade da medida seria amplificada pelo fato de se tratar de canal de Partido Político com funcionamento regular no país, existente desde 2008 e utilizado pela agremiação para manifestar sua posição sobre os mais variados temas de interesse público.”
“Há uma gama de conteúdos diversos que podem não estar relacionados à investigação de origem, a imposição de bloqueio integral – sem que se justifique de forma detalhada a extensão de tal determinação demasiada –, pode configurar evidente óbice à liberdade de manifestação do pensamento e ao acesso à informação, incorrendo, ainda, em censura prévia [...] O bloqueio integral da conta pode incorrer em risco de restrição de conteúdos que não necessariamente seriam relacionados ao presente caso – em evidente censura prévia e limitação do acesso à informação e ao debate democráticos garantidos aos cidadãos brasileiros e aos usuários da internet”, alegou o TikTok em seu recurso.
O Telegram foi além. Disse que a medida era não apenas desproporcional, mas causaria ainda o “efeito Streisand”, de acabar provocando, com o bloqueio, uma maior exposição dos conteúdos considerados ilícitos. Ainda argumentou que não ficou claro que crime o PCO teria cometido em suas postagens – pior, nem se sabia se elas também foram veiculadas no aplicativo de mensagens, nem nas demais plataformas que não o Twitter, origem das publicações citadas por Alexandre de Moraes. “Ainda que fosse identificada a existência de publicação supostamente criminosa no canal do PCO no Telegram, a medida de bloqueio completo e irrestrito do canal seria uma clara violação à liberdade de expressão, sob pena de generalização de que todas as publicações do canal, passadas, presentes e futuras, seriam criminosas, o que não pode ser confirmado”, afirmaram os advogados da empresa no Brasil.
O Facebook questionou Moraes se, de fato, o bloqueio abrangia a integralidade das contas e páginas na plataforma pertencentes ao PCO e por qual prazo duraria a medida, “tendo em vista a aproximação das eleições gerais de outubro de 2022 e a possibilidade de veiculação de propaganda eleitoral por meio de redes sociais”. Também perguntou ao ministro quais as postagens ofensivas foram publicadas no Facebook e no Instagram, pedindo a indicação dos respectivos endereços eletrônicos, conforme determina o Marco Civil da Internet.
Moraes não respondeu aos questionamentos e apenas votou pela rejeição do recurso. Em todos os votos negando os pedidos de reconsideração, limitou-se a reproduzir a decisão original, acrescentando o seguinte trecho: “O recorrente não apresentou qualquer argumento minimamente apto a desconstituir os óbices apontados. Nesse contexto, não há reparo a fazer no entendimento aplicado”.
No julgamento virtual, sem debates presenciais, encerrado na semana passada, outros oito ministros acompanharam Moraes – a maioria sem sequer apresentar seus votos escritos –, o que confirmou o banimento do PCO das redes por tempo indeterminado.
Apenas Kassio Marques e André Mendonça divergiram, apresentando, cada um, votos mais prolongados com vários argumentos contra a censura prévia fixada na decisão. O primeiro lembrou vários precedentes do STF que conferiram “primazia” e “posição preferencial” à liberdade de expressão ante outros direitos fundamentais, “dada a sua essencialidade para a vida democrática”. Ele reconheceu que ainda esmiuçou como a decisão de Moraes, bloqueando todo o PCO das redes, não era proporcional, mas sim excessiva.
“A derrubada de perfis, contas ou canais em redes sociais afasta, por completo, o direito de exposição de ideias com conteúdos lícitos nos mais diversos campos (político, econômico, social, jurídico, histórico, cultural, dentre inúmeros outros), quando a medida adequada é a retirada”, argumentou o ministro.
André Mendonça expôs raciocínio segundo o qual perfis em plataformas digitais podem ser equiparados às próprias pessoas que os detém na arena pública do debate. Assim, chamou a atenção para “a necessidade de se assegurar no universo online os direitos que os indivíduos têm offline”. “Não seria possível simplesmente acabar com a existência digital de uma pessoa, ainda que temporariamente”, escreveu no voto.
“Penso que se deva, o quanto possível, preservar a lógica, tal como no mundo real, de buscar repelir o comportamento desviante —no caso, a opinião/manifestação. Não, contudo, a própria persona do infrator. Dito de outro modo: dado que aqui tratamos de Direito sancionador, vale a máxima segundo a qual no âmbito do ius puniendi estatal, julga-se precipuamente a conduta, e não a pessoa do acusado”, registrou. Esse trecho fez parte do voto de Mendonça contra a resolução do TSE que passou a permitir suspensão de contas.
A presidente do STF, Rosa Weber, foi a única a expor voto escrito acompanhando Moraes. Esclareceu que o julgamento coloca em colisão, de um lado, “o caráter preferencial da liberdade de expressão e o compromisso constitucional de vedação à censura prévia”, e de outro, “a imperiosa necessidade de preservação do regime democrático em nosso país, exposto, na quadra atual, a graves e sistemáticos ataques”, como os do PCO, em sua visão.
Ainda assim, ela optou pelo bloqueio, citando estudiosos que têm defendido o conceito de “democracia combativa”. “Ou seja, uma democracia dotada de instrumentos de autodefesa contra aqueles ‘que se valem dos mecanismos constitucionais e democráticos para destruir, de dentro, a Constituição e a democracia’”, escreveu, citando o jurista Alaor Leite.
“Quando o agente ataca, como no caso, a própria existência desta Suprema Corte, enquanto instituição, ele se expõe, como efeito imediato dos mecanismos de autodefesa da democracia, à respectiva censura – inclusive penal – do Estado”, justificou Rosa Weber.
Na parte final de seu voto, porém, a ministra fez uma ressalva, ao afirmar que a questão exige “maiores reflexões e um debate mais aprofundado” por parte do STF, o que poderia ser feito no julgamento de mérito sobre o caso, que ainda vai ocorrer, mas em data indefinida – a marcação depende de Moraes e de Rosa Weber, após análise de novos recursos possíveis.
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