A intenção de regular os meios de comunicação em um eventual retorno à Presidência da República em 2023 vem sendo repetida de forma obstinada por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em declarações nos últimos meses. Em entrevista no último dia 9 à Rádio Clube, de Pernambuco, o ex-presidente voltou ao tema, o que suscitou discussões sobre os riscos para a liberdade de imprensa no Brasil em caso de um novo mandato de Lula.
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“Você não pode deixar a internet do jeito que está. Você não pode deixar a internet virar uma fábrica de mentiras, uma fábrica de fake news, uma fábrica de provocações”, disse o político que já foi preso. Ele definiu seu projeto de regulamentação da mídia de forma vaga e disse apenas que é necessário “estabelecer determinadas regras de civilidade nos meios de comunicação”. “É preciso que haja regulamentação na imprensa. Você não pode regulamentar a imprensa escrita, mas você tem internet para regular, tem o sistema de televisão”, afirmou.
O ex-juiz Sergio Moro (Podemos), pré-candidato à Presidência, criticou as falas do petista por meio do Twitter. “Lula quer controlar o conteúdo de TV e internet e de forma dissimulada chama isso de ‘democratização’. Isso é coisa de regimes autoritários. Liberdade de imprensa é pilar da democracia e é INEGOCIÁVEL”, disse Moro.
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), também se manifestou contra Lula. “Liberdade de imprensa é um princípio básico da democracia. Regular imprensa significa censurar a imprensa. Seja da direita ou da esquerda, quem flerta com a censura, compactua com o autoritarismo e com a ditadura. Um atraso para o Brasil e uma afronta à liberdade do país”, afirmou Doria.
As suspeitas de flerte com o autoritarismo não são exageradas. Lula nunca escondeu sua simpatia pelo chavismo, que tem um histórico de graves violações à liberdade de imprensa na Venezuela. Em 2017, a ditadura comandada por Nicolás Maduro aprovou a “Ley contra el Odio, por la Convivencia Pacífica y la Tolerancia” (Lei contra o Ódio, pela Convivência Pacífica e a Tolerância), que surgiu de uma alegada necessidade de coibir o “discurso de ódio” na internet, mas é usada, na prática, para calar a oposição.
Por outro lado, defender a necessidade de regulamentar a atuação de meios de comunicação não é necessariamente uma pauta da extrema-esquerda. Nos Estados Unidos e em algumas nações da Europa, a regulação dos meios de comunicação por agências que atuam de forma independente - mas pertencem ao governo - já existe. No Reino Unido, por exemplo, o Office of Communications (Ofcom), instituído em 2003, é a autoridade que regula televisão, rádio, telecomunicação e outros serviços. Uma de suas funções é proteger o público de conteúdos ofensivos. Nos EUA, um papel parecido cabe à Federal Communications Commission (FCC), instituída em 1934.
No Brasil, em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) revogou a lei de imprensa do período militar, o que, na opinião de alguns juristas, deixou um vácuo normativo sobre o assunto no país. Desde então, processos relacionados à imprensa são levados à Justiça e analisados somente à luz da Constituição, do Código Civil e do Código Penal. Além disso, não há um órgão cuja função específica seja regular temas relacionados à radiodifusão.
O tema da liberdade de expressão nos meios de comunicação tende a ser, em 2022, um dos focos dos debates na corrida presidencial. As discussões sobre os limites dessa liberdade e sobre as formas de conter dinâmicas nocivas para o convívio social suscitadas pela internet têm ficado cada vez mais acirradas, especialmente com a crescente interferência do Poder Judiciário no assunto.
Dias antes da fala de Lula, Bolsonaro discursou sobre liberdade de expressão
Uma semana antes da fala de Lula sobre o controle da imprensa, o presidente Jair Bolsonaro (PL) abordou o tema em seu discurso na sessão solene de abertura dos trabalhos do Congresso em 2022. A declaração pareceu dirigida de forma indireta ao petista.
“Reafirmo, meus senhores: me sinto hoje parlamentar aqui, também. Não deixemos que qualquer um de nós, quem quer que seja que esteja no Planalto, ouse regular a mídia. Não interessa por quê, com qual intenção e objetivo. A nossa liberdade, a liberdade de imprensa, garantida em nossa Constituição, não pode ser violada ou arranhada por quem quer que seja neste país", afirmou.
Em setembro do ano passado, Bolsonaro já tinha feito uma declaração no mesmo sentido, após uma fala semelhante de Lula. “A nossa liberdade de imprensa, com todos os seus defeitos, tem que persistir. No que depender de nós, jamais teremos quaisquer medidas visando censurá-los. É melhor falando do que calado”, disse o presidente.
Durante seu governo, Bolsonaro entrou em diversos conflitos com jornalistas, ameaçou cortes de publicidade e chegou a insinuar que a concessão pública da Rede Globo poderia não ser renovada em outubro de 2022. Até agora, no entanto, as diferenças do presidente com a imprensa não saíram da retórica.
Em setembro de 2021, Bolsonaro editou uma Medida Provisória para alterar o Marco Civil da Internet. O objetivo era dar uma solução legislativa para o problema da liberdade de expressão nas redes sociais no Brasil. O seu principal alvo era a moderação injustificada de conteúdos e de contas em redes sociais.
A MP exigia “acesso a informações claras, públicas e objetivas” sobre qualquer tipo de moderação de conteúdo feita por redes sociais. As redes deveriam explicar “os critérios e os procedimentos utilizados para a decisão humana ou automatizada” para suas decisões, exceto em casos que envolvessem segredos comerciais ou industriais.
O documento também pedia “contraditório, ampla defesa e recurso” diante de qualquer tipo de moderação de conteúdo nas redes sociais, que precisariam disponibilizar um canal específico para que as pessoas que tivessem seus conteúdos removidos pudessem se manifestar.
A MP foi criticada por diversos setores da sociedade por não tratar a fundo o problema da veiculação de informações falsas, e acabou sendo devolvida pelo Congresso. Depois, tornou-se um projeto de lei, mas está com a tramitação parada.
Guru de Lula sobre imprensa quer criar o Conselho Nacional de Comunicação
Nos últimos meses, em diversas entrevistas e declarações, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou sobre seu desejo de regular os meios de comunicação no Brasil em caso de um eventual novo mandato na Presidência da República a partir de 2023.
Em agosto do ano passado, ele afirmou a uma rádio da Bahia: “Estou ouvindo muito desaforo, leio muito a imprensa. Tem alguns setores da imprensa que não querem que eu volte a ser candidato. Porque, se eu voltar, vou regular os meios de comunicação deste país”.
Lula afirmou em um discurso da mesma época que era preciso aprovar de forma urgente a regulamentação da comunicação no Brasil. Na ocasião, ele chegou a citar a mídia da Venezuela que, segundo ele, “destruiu” Hugo Chávez, a exemplo do que a imprensa brasileira teria feito com ele próprio.
No campo da comunicação, o homem de confiança de Lula é o jornalista Franklin Martins, ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social de seu governo. A principal proposta de Martins é criar um Conselho Nacional de Comunicação, com composição representativa dos poderes públicos e de setores da sociedade civil, para estabelecer normas e políticas públicas do setor da comunicação.
A criação de conselhos é comum em democracias, mas o aparelhamento desse tipo de órgão sempre foi uma marca da gestação de ditaduras socialistas. No caso do Brasil atual, um dos riscos relacionados a um órgão do tipo para o controle da comunicação seria o de eles acabarem capturados por ONGs de caráter progressista, que costumam se perpetuar em assentos destinados à sociedade civil em conselhos dessa espécie.
O modelo de controle de imprensa que costuma ser mais citado como inspiração pelo PT é o britânico. A regulação da imprensa do Reino Unido é exercida por um órgão chamado Ofcom — abreviação de Office of Communications —, estabelecido em 2002 para controlar as indústrias de radiodifusão e de telecomunicações e os correios do Reino Unido.
A atribuição legal do Ofcom é representar os interesses dos cidadãos britânicos perante os meios de comunicação e proteger o público de conteúdos nocivos ou ofensivos. Historicamente, desde sua criação, a necessidade de existência do órgão nunca chegou a ser contestada no Reino Unido de forma expressiva, mas algumas de suas decisões causam polêmica.
No começo de 2021, por exemplo, o Ofcom passou a fiscalizar a presença de discurso de ódio em meios de comunicação. “Discurso de ódio” é definido pelo órgão como “toda forma de expressão que espalha, incita, promove ou justifica o ódio com base na intolerância a deficiências, etnia, origem social, sexo, gênero, mudança de gênero, nacionalidade, raça, religião ou crença, orientação sexual, cor, características genéticas, idioma, opinião política ou qualquer outra opinião, pertença a uma minoria nacional, propriedade, nascimento ou idade”.
Crítico da atuação do Ofcom, o jurista britânico Andrew Tettenborn observou, em artigo de 2021 publicado no site The Critic, que o Ofcom é uma ameaça à liberdade de expressão no Reino Unido, citando vários casos em que sua atuação poderia estar extrapolando a sua missão original.
“Em maio deste ano, o Ofcom interveio com força para sancionar as emissoras por veicular assuntos que supostamente se oporiam ao consenso científico e reduziriam a confiança popular nas tentativas do governo de lidar com a Covid-19. (…) Além da regulamentação direta, nos últimos três anos ou mais, o Ofcom tem aproveitado a ampla função estatutária que lhe foi confiada para promover a igualdade de oportunidades em relação a raça e sexo, impondo exigentes cotas às emissoras sob ameaça de encerramento e até mesmo retirada da licença caso não se conformem às diretrizes”, escreveu Tettenborn.
Moro é contrário à ideia de controle da imprensa, mas já foi favorável à “prisão de radicais” no inquérito dos atos antidemocráticos
Tanto Doria quanto Moro já manifestaram posicionamentos contrários à ideia de regular a imprensa proposta por Lula, e nunca falaram em projetos de regulamentação da comunicação no Brasil. Ambos também já criticaram Bolsonaro por seus conflitos com jornalistas.
Quando o presidente brigou com uma repórter da TV Vanguarda em julho de 2021, Doria tuitou: “Lamentável mais um surto verborrágico do presidente Bolsonaro contra a imprensa. O ato demonstra sua intolerância e descontrole. Minha solidariedade à jornalista agredida e aos profissionais atacados. A liberdade de imprensa é um direito que o atual governo insiste em confrontar”.
Em seu discurso de filiação ao Podemos, em novembro de 2021, Moro fez uma declaração que pareceu direcionada tanto a Lula como a Bolsonaro: “Chega de ofender ou intimidar jornalistas. Os jornalistas são essenciais para o bom funcionamento da democracia e agem como vigilantes de malfeitos dos detentores de poder. A liberdade de imprensa deve ser ampla. Jamais iremos estimular agressões. Jamais iremos propor controle sobre a imprensa – social ou qualquer que seja o nome com que se queira disfarçar censura ou controle de conteúdo”, afirmou.
Apesar da defesa da liberdade de expressão, Moro já se manifestou favorável à prisão de investigados do inquérito dos atos antidemocráticos, em junho de 2020. “A prisão de radicais que, a pretexto de criticar o STF, ameaçam explicitamente a instituição e seus ministros, é correta. A liberdade de expressão protege opiniões, mas não ameaças e crimes. O debate público pode ser veemente, mas não criminoso”, disse ele à época.
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