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Relatório parcial do Comitê Judiciário da Câmara dos Estados Unidos revelou que aproximadamente 150 perfis foram suspensos das redes sociais
Relatório parcial do Comitê Judiciário da Câmara dos Estados Unidos revelou que aproximadamente 150 perfis foram suspensos das redes sociais| Foto: Gazeta do Povo

O relatório parcial do Comitê Judiciário da Câmara dos Estados Unidos jogou luz sobre o tamanho, a intensidade e a falta de transparência da censura no Brasil nos últimos anos. Como detalhou a Gazeta do Povo, o documento revelou que aproximadamente 150 perfis foram suspensos das redes sociais e outros 300 usuários ainda correm risco de serem censurados, incluindo parlamentares, jornalistas, formadores de opinião e autoridades, quase todos do campo da direita ou críticos da atual cúpula do Judiciário e de seu ativismo político.

Mas, além dos números, os casos expostos mostram também a escala industrial das ordens do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) e atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em tentar calar, no ambiente virtual, um número crescente de pessoas, mais ou menos influentes nas redes, que ousavam questionar a imparcialidade do processo eleitoral. Na maior parte das decisões divulgadas no documento, fica clara a ideia de Moraes de que o lançamento de dúvidas sobre a integridade das urnas eletrônicas fomentaria um ambiente propício para contestações do resultado da disputa de 2022, na qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) venceu Jair Bolsonaro (PL) por apertada margem de votos.

Para além da suspensão dos perfis em si, um dos maiores problemas, apontados pelos que foram banidos das redes e também para parte relevante da comunidade jurídica, é a falta de transparência sobre os motivos da censura e um frágil embasamento jurídico. Algumas decisões divulgadas apresentam justificativas grosseiras e repetidas, em diferentes casos, para restrições excessivas à liberdade de expressão, direito fundamental garantido pela Constituição, e que contrariam regra expressa do Marco Civil da Internet, lei de 2014 que regula as redes sociais e as condições para a remoção de conteúdo postados por usuários.

“Este relatório provisório expõe a campanha de censura do Brasil e apresenta um estudo de caso surpreendente de como um governo pode justificar a censura em nome de acabar com o chamado discurso de ‘ódio’ e a ‘subversão’ da “ordem’”, diz o documento da Câmara dos EUA.

O termo censura não é fortuito. No entendimento de especialistas, a violação à liberdade de expressão ocorre porque a suspensão de perfis – ou a proibição de abertura de novas contas nas redes, também presente em algumas decisões de Moraes – impede a pessoa de se comunicar no ambiente virtual, vedando futuras manifestações lícitas e legítimas.

Justamente para proteger a liberdade de expressão, o Marco Civil da Internet permite apenas que o Judiciário determine a remoção de postagens específicas, discriminando o endereço exato do material que deve ser retirado do ar nas mídias sociais. Não está prevista na lei a possibilidade de suspensão de perfis, contas e canais; trata-se de uma inovação de Moraes, que argumenta que os usuários responsáveis estariam cometendo crimes nessas manifestações – principalmente na incitação de uma ruptura no regime democrático – e que seria necessário interromper essa conduta, e daí os bloqueios.

O advogado Emerson Grigollette, especialista em Direito Digital, defende vários dos influenciadores censurados por Moraes, como a juíza Ludmila Lins Grilo, o jornalista Bernardo Küster e os comentaristas políticos Rodrigo Constantino e Adrilles Jorge, todos alvos de inquéritos sigilosos em curso no STF e de representações para remoção de conteúdo no TSE. Segundo ele, em vários momentos, as contas eram suspensas e seus clientes só sabiam por um comunicado enviado por e-mail pelas plataformas, mas não era informado o motivo.

Para saber a razão, Grigollette tinha de pedir ao gabinete de Moraes, no STF ou no TSE, as decisões, nem sempre disponíveis. No caso do STF, os autos são físicos, em papel – ao contrário de todos os processos, que tramitam de forma eletrônica – e o ministro liberou, em apenas algumas ocasiões, partes da investigação. O advogado conta que, em 2022, chegou a telefonar para o TSE e informou um número de processo comunicado pelo Twitter, mas foi informado que era um processo inexistente. Só meses depois da suspensão de um perfil, conseguiu obter a decisão do caso.

“A gente chegou a conversar com advogados para pedir o trancamento, cabível quando a investigação se prolonga sem apontar um crime. Mas como vou entrar com esse pedido se não sei qual crime está sendo imputado? Não sei exatamente do que meu cliente está sendo acusado, para saber se tem tipicidade ou alguma falha no procedimento. A gente fica amarrado, assistindo. E também não posso entrar com um mandado de segurança no STF, porque há o entendimento de que um ministro não pode revisar a decisão de outro”, afirma o advogado.

Ele conta que, de repente, algumas contas de clientes foram reativadas, sem que eles e a defesa soubessem o porquê. No relatório americano, algumas decisões de Moraes nesse sentido foram divulgadas. Assim determinava o ministro, no TSE, quando verificava a “cessação de divulgação de conteúdos revestidos de ilicitude e tendentes a transgredir a integridade do processo eleitoral, a fim de possibilitar que os envolvidos possam retornar a utilizar suas redes sociais dentro do mais absoluto respeito à Constituição Federal e à Legislação”. No STF, várias contas foram reativadas a pedido dos censurados – caso do senador Alan Rick, cujo pedido foi feito pelo Senado, e também da influenciadora Bárbara Destefani, do canal “Te Atualizei”.

Fundamentação jurídica

Embora boa parte dos documentos expostos no relatório não apresente os motivos para a suspensão de perfis, isso não significa que as ordens não tenham fundamentação jurídica, requisito de toda determinação judicial. Muitos dos documentos divulgados são ofícios, em que o STF apenas comunica às plataformas uma decisão prévia de Moraes para banir conta(s) ou usuário(s) da rede social, e na qual ele é obrigado a justificar a necessidade da medida. O STF, por meio de sua assessoria de imprensa, esclareceu que muitos dos ofícios expostos não estão acompanhados das “decisões fundamentadas que determinaram a retirada de conteúdos ou perfis”. “Todas as decisões tomadas pelo STF são fundamentadas, como prevê a Constituição, e as partes, as pessoas afetadas, têm acesso à fundamentação”, afirmou o tribunal.

A maior parte dessas decisões, contendo a fundamentação jurídica, permanece sigilosa – algumas foram divulgadas no relatório, como a que Moraes, a pedido da OAB, suspende as atividades da entidade Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil (OACB) e na que o ministro bloqueia os canais de Bruno Aiub, podcaster conhecido como Monark. Em regra, as plataformas têm o direito de acessar as decisões, para que possam recorrer.

“Não está claro nos documentos se as plataformas recebiam sempre decisões fundamentadas ou se recebiam também apenas ofícios com ordem e comunicação da existência de decisão sigilosa”, comentou, na rede X, o advogado André Marsiglia, especialista em defesa da liberdade de expressão e de imprensa.

“Caso nem todos os ofícios estavam acompanhados das respectivas decisões fundamentadas, é obviamente grave! Ofícios com ordens a partes e interessados devem sempre estar acompanhados de decisões fundamentadas. Ordem não serve apenas para ser cumprida, mas também para ser objeto de recurso, se não se sabe o fundamento dela, impede-se o democrático direito de recorrer”, explicou Marsiglia.

Outro problema, demonstrado nos ofícios às plataformas, segundo Marsiglia, são os prazos exíguos para a suspensão dos perfis – duas horas – além das multas exorbitantes – R$ 100 mil, em caso de descumprimento. “É desproporcional e errado. Na nossa legislação, quando juiz não determina prazo maior, prevê-se 48 horas para cumprimento, no mínimo”, diz o advogado, citando o artigo 218, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil.

Nas ordens de suspensão de perfis, também fica claro que Moraes agia de ofício (por iniciativa própria) e com a ajuda de juízes auxiliares do STF e do TSE. Algumas das ordens da Suprema Corte foram assinadas também por Airton Vieira, identificado como “Magistrado Instrutor do Gabinete” de Moraes. Ele é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e também trabalhou com Moraes no TSE numa comissão de segurança cibernética – criado para proteger a Corte de hackers. O órgão também passou a atuar no combate a postagens nas redes que questionavam ou desacreditavam a integridade das urnas eletrônicas.

No mesmo sentido, dentro do TSE, atuava a “Assessoria Especial de Enfrentamento a Desinformação” (AEED), de onde partiam vários pedidos ao ministro para retirar do ar manifestações de dúvidas em relação às urnas eletrônicas e à isenção da Corte Eleitoral na condução do processo eleitoral, principalmente em 2022.

Além da reprodução de imagens de postagens e vídeos com esse conteúdo, as decisões faziam uma descrição sucinta do material. A maior parte das decisões, contudo, tinha texto semelhante, alertando para o risco de desestabilização das eleições. “É evidente que as publicações possuem potencial para tumultuar o processo eleitoral, na medida em que discursos pró-ruptura incentivam comportamentos ilegais e beligerantes, atraindo, como consequência, a possiblidade de altercações ou episódios potencialmente violentos”, dizem várias decisões do TSE, algumas assinadas por outro juiz auxiliar, Marco Antonio Martin Vargas.

Dallagnol critica AEED; juristas relativizam problemas apontados

Segundo o ex-procurador Deltan Dallagnol, a participação desse órgão no monitoramento das redes sociais não está prevista na lei e, como ele está subordinado ao ministro, não tem independência. “A AEED/TSE não tem nenhuma independência funcional como outros órgãos, como a PGR, cujos membros têm garantias e prerrogativas previstas na Constituição de independência e autonomia funcional justamente para impedir pressões indevidas e subordinação de seus trabalhos e consciências”, comentou na rede X.

Dallagnol observou que a AEED chegou a denunciar postagens de Monark a Moraes no âmbito de um inquérito no STF. “O que um órgão de combate à desinformação no período eleitoral está fazendo peticionando em um inquérito criminal no Supremo? Pior ainda: o órgão foi criado pela Justiça Eleitoral e está, portanto, subordinado ao próprio Moraes na condição de presidente do TSE”, criticou.

Ao observar o material, alguns juristas relativizaram os problemas apontados por críticos de Moraes. A advogada e professora Eloísa Machado, especialista em direitos humanos, doutora pela USP e pesquisadora sobre o STF, pontuou que inquéritos sigilosos são comuns em investigações de organizações criminosas – imputação que Moraes faz a militantes de direita que, segundo ele, integrariam “milícias digitais” que promovem “ataques” às instituições. Para Machado, manifestações censuradas pelo ministro incitavam tentativa de golpe, que é crime. “Se a empresa pode suspender perfil, juiz também pode”, postou ela na rede X.

Para Rafael Mafei, advogado e professor da USP, a divulgação do relatório por deputados e influenciadores de direita faria parte de um movimento para “aumentar o custo político de medidas judiciais” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. “Esperem mais dossiês, mais comícios, mais ‘denuncias-bomba’ (que não tem bomba nenhuma...), mais barulho. O debate jurídico será, para eles, cada vez mais um detalhe desimportante em meio à grande onda que estão tentando erguer. Uma onda que, eles esperam, arraste tudo pela frente e ajude o Jair a escapar da cadeia”, postou, também na rede X.

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