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40 projetos de lei

Especialistas criticam relatório de juristas para “Brasil antirracista”; conheça as propostas

Entrega do relatório da comissão na Câmara dos Deputados
Entrega do relatório da comissão na Câmara dos Deputados (Foto: Paulo Sergio/Câmara dos Deputados)

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Um documento com 610 páginas foi o resultado final dos trabalhos da comissão de juristas negros instituída pela Câmara dos Deputados para propor mudanças na legislação brasileira com relação ao combate ao racismo. O documento contém cerca de 40 sugestões de projetos de lei que, ao menos no entender da comissão, seriam fundamentais para a “construção de um Brasil antirracista”. Analistas, porém, alertam que as proposições podem estar longe de serem reais contribuições para o fim da discriminação racial.

Entre as sugestões da comissão há propostas em praticamente todas as áreas, como economia, saúde, educação, cultura e segurança pública. Os projetos incluem novas formas de cotas raciais – inclusive no setor privado, regras para programas de rádio e televisão, "Mega-Sena da Consciência Negra", reformulação do Bolsa Família - agora chamado de Auxílio Brasil -, linha de crédito exclusiva, funk como cultura nacional e até a penalização de escolas públicas que deixem de trabalhar de forma “consistente” a história e a cultura afro.

Na avaliação de especialistas, muitas das propostas são impositivas, engessam a ação da administração pública, impõem uma falsa percepção da questão racial no país e deixam de lado a busca de igualdade de direitos para impor agendas externas progressistas.

Para o doutor em Direito Irapuã Santana há, de fato, uma divisão na sociedade, promovida pelo próprio Estado, originada ainda no período da escravidão no país, mas que pode ser superada. Para isso, são necessárias medidas que foquem no setor social e cultural e possam conscientizar a população e, a partir disso, gerar a integração da população e não divisão.

Segundo ele, embora as propostas possam ter tido boa intenção, muitas pecam pelo caráter extremamente impositivo, como a obrigação de que empresários tenham em seus quadros de colaboradores percentual mínimo de 56% de pessoas negras, ou de percentual equivalente de pessoas negras do município ou do estado em que se localiza o estabelecimento, conforme dados do IBGE.

“Há uma diferença entre promover uma política pública que possa trazer mais igualdade, trazer um tratamento mais igualitário, e uma política pública que acaba sancionando a desigualdade”, opina.

Além de considerar a medida inconstitucional, ele afirma que se trata de uma ingerência ilegítima à liberdade individual do empregador. Para ele, o caminho ideal seria o uso de incentivos e não o da força do Estado. Ainda assim, Santana vê algumas medidas propostas como positivas, como a que cria um fundo nacional para o combate ao racismo. Ele lembra que a medida já estava prevista do texto original do Estatuto da Igualdade Racial, mas acabou sendo retirado. “O fundo é parte importante para mostrar que o Estado efetivamente se preocupa e tem como objetivo a erradicação do racismo”, avalia.

Interesses ideológicos

Já para Márcio Luís Chila Freyesleben, autor do livro Globalismo e Ativismo Judicial, as medidas, além de estarem muito longe de atenderam às necessidades do país, possuem caráter ideológico.

“A Comissão de Juristas da Câmara de Deputados está apenas repercutindo o ativismo norte-americano, sem se dar conta de que a realidade brasileira é completamente diferente. E assim o faz porque o seu objetivo não é a proteção das minorias, mas sim a difusão de uma ideologia socialista disfarçada de direitos humanos”, diz ele.

Para Freyesleben, o relatório endossa um “equívoco histórico”, na medida em que esquece que a luta pela igualdade racial nos EUA, que teve como um de seus principais nomes Martin Luther King, era basicamente pelo reconhecimento de atributos fundamentais constitucionalmente reconhecidos a todo cidadão.

Essa visão se aproximava do atual conceito de direitos humanos, ou seja, que o indivíduo é portador de atributos inerentes à sua condição humana – independentemente de raça, credo ou outro atributo, e que não podem ser negados ou retirados pelo Estado. “Mas hoje a luta de classe foi projetada para todas as interações sociais, e a concepção de complementariedade e de interesse mútuo foi substituída por uma noção de oposição de interesses que colocou todos os grupos em conflito”, afirma Freyesleben.

Várias propostas apresentadas pela comissão limitam o poder de ação da administração pública. Um exemplo são as várias propostas que definem porcentagens de investimentos em áreas específicas ou aumento do valor do salário mínimo atrelados ao resultado anual do PIB. “Com isso, o Poder Executivo se enfraquece e o Legislativo fica mais forte – e o Judiciário mais ainda”, alerta Freyesleben.

Cultura vigiada

Entre as propostas há várias relacionadas ao setor cultural, além de prever a liberação de financiamentos específicos para obras audiovisuais de proponentes negros, os juristas querem legislar até mesmo em relação à composição de elenco das produções. Se um dos projetos propostos pela comissão for levado adiante e aprovado pelo Congresso, haverá controle até do número de atores e integrantes da equipe de produção negros em novelas, filmes e séries.

Além disso, as empresas deverão repassar anualmente ao Ministério do Trabalho e Previdência informações sobre a composição racial de seu quadro de atores, figurantes e técnicos, com ou sem vínculo empregatício, incluídos de cargos de direção. Até o próprio teor da produção poderá ser “vigiado” - o que pode configurar censura prévia.

Segundo uma das propostas, as produções de rádio, televisão ou streaming não poderão “reproduzir racismo através de representações negativas ou estereótipos da pessoa negra” ou desconsiderar “fatos ou pessoas em lugares de protagonismo e resistência na luta por direitos e na construção da sociedade brasileira”. O projeto não deixa claro como esse controle seria realizado.

Veja a seguir os projetos que, no entender dos juristas, são necessários para fazer do Brasil uma "nação antirracista".

Renda mínima

Partindo do pressuposto que a maior parte da população pobre do país é constituída por negros, o relatório propõe a adesão a um sistema de renda mínima, incorporando o Bolsa Família - que atualmente se chama Auxílio Brasil -, e demais programadas sociais. Seriam dois grupos beneficiados. O benefício básico seria destinado a famílias com renda per capita mensal igual ou inferior a R$ 260, sem limite de benefícios por núcleo familiar. Já o "Benefício Emancipação Cidadã" seria destinado a pessoas que integram famílias com renda per capita mensal superior a R$ 260 e inferior a R$ 520.

Os recursos necessários – calculados pela comissão em 2,5% do PIB -, viriam de mudanças nas leis de tributação, como alterações no Imposto de Renda. A comissão propõe que o IR seja estendido à distribuição de lucros ou dividendos, além de definir duas novas alíquotas para pessoas físicas, 35% para rendimento acima de R$ 20 mil reais mensais e de 49% para rendimento acima de R$ 50 mil reais.

Crédito para empreendedores negros

O relatório também quer a criação do Programa de Crédito ao Empreendedorismo Negro (PCENO) para “assegurar, nas políticas de concessão de crédito dessas instituições, prioridade e condições facilitadas, inclusive taxas de juros reduzidas, para o financiamento de microempreendedores individuais negros, de quilombolas e de empresas controladas e dirigidas por pessoas negras”. Na prática, isso significaria que as instituições de crédito ofereceriam empréstimos mais baratos e com mais facilidade em relação a garantias, carências e prazos de pagamentos a empreendedores negros do que as linhas de crédito comuns.

O projeto ainda estabelece uma espécie de “sistema de cotas” para programas de financiamento já bem conhecidos como o PNMPO e Pronampe, que deverão disponibilizar 50% do total de financiamentos a pessoas negras ou empresas controladas por negros.

Salário mínimo

Embora não trate diretamente do tema principal da comissão, os juristas também apresentaram uma proposta em relação ao salário mínimo. Eles propõem reajustes anuais atrelados ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) e também à taxa de crescimento real do PIB. De acordo com a comissão, reajustes adequados que promovam melhoria nas condições de vida dos trabalhadores e, assim, contribuem para a redução da desigualdade.

Gastos sociais contínuos

Em relação aos gastos públicos, sugestão de emenda constitucional apresentada no relatório prevê que o Estado seria obrigado a manter níveis de gastos sociais e investimentos públicos “compatíveis com o desenvolvimento econômico e social, o aumento continuado do bem-estar e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”, bem como para fixar aplicação mínima – de 2% do PIB – para os investimentos públicos.

“A dívida histórica do Brasil com a população negra deve ser corrigida com base em um novo modelo de desenvolvimento inclusivo, que altere estruturas econômicas e sociais que alimentam as desigualdades em nosso país”, afirma o relatório. Na prática, isso poderia engessar ainda mais o orçamento público, dificultando a adoção de medidas de contingenciamento em caso de necessidade.

Funcionamento do Estado

Outro projeto quer mudar os princípios do funcionamento do Estado brasileiro e da administração pública, alterando o Decreto-Lei 200, de 25 de fevereiro de 1967. Aos princípios da administração pública federal – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência – seria acrescentado mais um item, a igualdade.

Segundo o texto, passaria a ser obrigação da administração pública buscar concretizar a igualdade em todas as suas dimensões inclusive “por meio de um combate permanente a mecanismos materiais e simbólicos de reprodução de desigualdades e marginalizações e promoção de estratégias focalizadas em políticas universais, ações afirmativas e critérios de proteção especial a grupos em desvantagem”.

O texto ainda obriga o Estado a adotar políticas e estratégias para “combater o racismo institucional” e toda a discriminação de cor, raça, gênero, orientação sexual, deficiência, religião e quaisquer outros tipos de discriminação.

Cadastros públicos

Entre os itens constantes nas sugestões dos juristas está a coleta de dados. Um projeto específico para isso foi incluído no relatório, prevendo a obrigatoriedade de informações sobre raça/cor e “identidade de gênero” em todos os registros e cadastros na administração pública federal.

“A formulação de políticas públicas adequadas pressupõe a elaboração de informações estatísticas tempestivas e desagregadas sobre a população brasileira, em suas diversas dimensões”, dizem os juristas na justificativa da proposta.

Outro projeto semelhante determina a obrigatoriedade da apresentação de informações sobre cor ou raça, sexo e gênero em todos os registros e cadastros privados e na administração pública federal, além da produção e divulgação de estatísticas no Sistema Estatístico Nacional segundo cor ou raça, sexo e gênero.

Recursos públicos

Para que projetos e programas voltados para a população negra tenham com mais recursos, os juristas sugerem que as despesas públicas passem a ser classificadas de acordo com seu “impacto na redução das desigualdades sociais de raça e gênero”. O propósito seria “excetuar essas despesas de medidas de limitação de empenho e movimentação financeira e para definir ações de avaliação e transparência acerca dessas despesas”.

Outra proposta é a criação do Fundo Nacional de Enfrentamento ao Racismo (FNER), que passaria a receber recursos das loterias já existentes. Os juristas ainda defendem a criação da Mega-Sena da Consciência Negra, anualmente no dia 20 de novembro, e cuja arrecadação será revertida integralmente ao Fundo. O FNER seria usado para custear os programas de combate ao racismo e também para regularização de terras de remanescentes quilombolas.

Investimentos em áreas quilombolas

Especificamente para as comunidades quilombolas, o relatório apresenta um projeto de emenda constitucional para obrigar o Estado a investir uma porcentagem fixa do PIB em políticas públicas voltadas para renascentes quilombolas. Seriam anualmente 0,002% do PIB durante um período equivalente a 20 exercícios fiscais. Em 2020, esse percentual correspondeu a R$ 148 milhões.

“A dívida histórica do Brasil com as comunidades quilombolas jamais será saldada sem a consignação de recursos adequados para o processo de reconhecimento e de certificação de suas terras e para o apoio a essa população”, justificou a comissão.

Cultura afro na escola

A comissão também quer que a distribuição de recursos do Fundeb às escolas públicas seja condicionado à “efetiva inclusão do estudo da história e cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental, médio, públicas e privadas”.

De acordo com a proposta, municípios ou estados que não promoverem a “implementação consistente do estudo de história e cultura afro-brasileira e indígena na base curricular” simplesmente deixarão de receber os recursos do fundo – fundamental para a educação de crianças e adolescentes.

No texto, eles justificam a medida dizendo que a “desobrigação vislumbrada pelas escolas brasileiras se dá, em boa parte, pela contínua invisibilidade da participação da população negra na construção da sociedade brasileira, ocasionada pela negação do racismo enquanto problema institucionalizado e estruturalmente sustentado”.

Em outra sugestão de projeto de lei, os juristas indicam o que seria a “implementação consistente” mencionada no projeto anterior. Segundo o texto, a “observância da inclusão do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena no conteúdo programático curricular se dá mediante a formação e qualificação específica permanente de docentes, orientação pedagógica especializada e investimentos na produção e distribuição de materiais didáticos adequados”.

Recursos para a cultura negra

Na área cultural, uma das propostas do relatório é a alteração do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que passaria a ser destinado à preservação dos bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro, “com especial proteção e valorização do patrimônio afro-brasileiro e indígena”. Assim, os incentivos fiscais previstos no programa deveriam priorizar obras, produtos, eventos ou outros decorrentes que valorizassem a história e cultura afro-brasileira e indígena, seus saberes tradicionais e orais.

Ao menos 40% de todos os recursos do Fundo Nacional de Cultura passariam a ser empregados em projetos vinculados à cultura e à arte dos povos negros, com prioridade para propostas que beneficiem ou valorizem as comunidades quilombos, e os povos indígenas.

Rádios e televisões

A programação das rádios, emissoras de televisão e produções nacionais para serviços de streaming também entraram na mira dos juristas. Eles propõem que seja obrigatório que as programações espelhem a proporção da composição étnico-racial brasileira, conforme os percentuais apurados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa norma só pode ser dispensada no caso de produções documentais ou baseadas em histórias reais de grupos étnicos específicos.

Haveria um prazo de dois anos para as TVs, rádios e serviços de streaming se adaptarem às novas regras. A empresa que não cumprir as determinações poderá receber advertência, multa ou mesmo suspensão da concessão.

Audiovisuais

O relatório traz também uma proposta que reserva 50% das vagas em editais de incentivos públicos federais para o setor de produção audiovisual – filmes, séries, documentários, animações etc. – para pessoas negras (40%) e indígenas (10%).

Nesta mesma linha, há ainda outra proposição dos juristas, estabelecendo que os serviços de informação, divertimento, propaganda e publicidade das empresas de radiodifusão “deverão considerar a valorização da herança cultural e da participação da população negra na história do país”. Para isso, segundo a proposta, não poderão “reproduzir racismo através de representações negativas ou estereótipos da pessoa negra” ou desconsiderar  “fatos ou pessoas em lugares de protagonismo e resistência na luta por direitos e na construção da sociedade brasileira”.

Igualmente, não poderão “reproduzir racismo pela ausência de representatividade negra profissional, artística ou de criação/produção na produção audiovisual”. Todos os anos, as empresas deverão repassar ao Ministério do Trabalho e Previdência informações sobre a composição racial de seu quadro de atores, figurantes e técnicos, com ou sem vínculo empregatício, incluídos de cargos de direção.

Novo feriado e cultura nacional

Ainda em relação à cultura, o relatório traz uma sugestão de projeto de lei para criar um novo feriado, o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, a ser celebrado, anualmente, em 20 de novembro. Igualmente, seriam consideradas como datas comemorativas o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé (30 de setembro) e o  Dia Nacional das Culturas Bantu no Brasil (13 de outubro).

No mesmo projeto consta o reconhecimento como manifestações da cultura nacional as escolas de samba, incluindo desfiles, músicas e práticas; e ainda as “expressões artísticas das periferias”. Nesse último item seriam incluídos, por exemplo, o hip-hop, o funk, pagode, samba-reggae, grafite e slam ("batalha de poesias"). Dessa forma, o poder público deveria incentivar e garantir a essas manifestações culturais a livre realização e acesso às fontes de financiamento público.

Fundação Palmares

Os juristas querem que a Fundação Palmares seja administrada por uma diretoria formada por dois diretores e um presidente, nomeados pelo presidente da República, “dentre cidadãos com relevante histórico profissional em defesa dos direitos e interesses da população afrodescendente, por proposta do Ministro de Estado da Cultura”.

Vale ressaltar que atualmente o Brasil não tem Ministério da Cultura. A área agora está contemplada na Secretaria Nacional da Cultura, que faz parte da estrutura do Ministério do Turismo.

Racismo estrutural nos serviços de saúde

Defendendo a ideia de que os serviços públicos são racistas, na medida em que não atendem às necessidades da população negra, os juristas apresentam uma série de medidas de fortalecimento da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Entre as medidas está a obrigatoriedade de coleta e divulgação de dados sobre a saúde da população negra, desenvolvimento de ações específicas para o combate à mortalidade provocada por causas violentas, e reconhecimento dos saberes e práticas tradicionais da população negra, sobretudo dos povos tradicionais de matriz africana, na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS.

“Se temos experiências exitosas em produção normativa antirracista, elas ainda são sumamente insuficientes para enfrentar o racismo como fenômeno que organiza relações sociais institucionais e intersubjetivas, o que faz com que o campo da saúde ainda seja um dos mais expressivos da inviabilidade da vida negra em nosso país”, diz o texto.

Outra sugestão de projeto altera a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993). Pela proposta, as entidades públicas ou privadas que gerenciam serviços, programas, projetos e benefícios de assistência social deverão estabelecer normas e padrões de promoção de equidade e fruição igualitária dos serviços oferecidos, e promoção do combate ao racismo institucional.

Cotas

Além das cotas raciais atualmente em funcionamento, os juristas querem que elas sejam estendidas também para a contratação de aprendizes e estagiários. Pelo menos 50% do total das vagas seriam destinadas a adolescentes e jovens negros.

Há também outra sugestão para garantir a continuidade da lei de cotas nas universidades e instituições federais de ensino superior, que a princípio deveria ser uma medida de caráter provisório e seria revista em 2022. “Ainda não é possível dizer que o objetivo da Lei de Cotas tenha sido atingido, pois há elementos que indicam que a porcentagem de estudantes cotistas ainda não se equipara a dos estudantes que ingressam por ampla concorrência”, justifica o texto.

Outra proposta prevê reserva de vagas para negros, não inferior à proporção da população negra no estado, Distrito Federal ou município, segundo o IBGE, nos concursos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos nos órgãos operacionais do Sistema Único de Segurança Pública.

Setor privado

Os juristas também propõem cotas para a contração de funcionários no setor privado. O projeto de lei estabelece que as empresas privadas serão obrigadas a assegurar, na composição do seu quadro de empregados e de prestadores de serviço sem vínculo empregatício, em todos os seus estabelecimentos no território nacional, percentual mínimo de 56% de pessoas negras, ou de percentual equivalente de pessoas negras do município ou do estado em que se localiza o estabelecimento, conforme dados do IBGE.

Essa reserva deve ser aplicada a todos os níveis hierárquicos da empresa, incluindo chefias, gerências e diretoria. As empresas também seriam obrigadas a incluir informação sobre cor ou raça de todos os empregados nos sistemas de cadastro de admissão e dispensa de empregados, como o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).

No caso de não cumprimento das normas previstas, o projeto prevê a aplicação de multa e impedimento financiamentos e participação em licitações. “O aspecto primordial que intervém negativamente na ampliação das oportunidades para negras e negros é, ainda, o preconceito, o racismo estrutural. A política afirmativa de cotas é imprescindível para a inclusão de negras e negros no mercado de trabalho”, diz a proposta.

Nesta mesma linha, outra sugestão da comissão é o estabelecimento de cota mínima de 50% para pessoas negras nos conselhos de administração de sociedades anônimas e de empresas estatais. Outra sugestão traz uma proposta um pouco diferente para a composição dos conselhos de administração. Em vez de 50%, a cota para negros seria de 30%, desde que acompanhada de outra cota, para mulheres - também de 30%.

Racismo institucional

Há também um projeto específico para combater o “racismo institucional”, seja por meio de discriminação intencional ou involuntária. A proposta prevê que a União, estados e municípios deverão fazer estudos e ações para combater o racismo institucional, inclusive nos serviços de segurança pública, onde o foco seria especialmente o combate à tortura e às práticas de perfilamento racial – quando a cor da pele ou etnia é o único parâmetro usado por policiais e agentes de segurança para fazer abordagens, revistas injustificadas ou indicar suspeito de atividade criminosa.

Gestores que deixem de estabelecer esse tipo de medida, segundo a proposta dos juristas, poderiam responder por ato de improbidade administrativa.

No caso de empresas privadas responsáveis por práticas discriminatórias, há previsão de sanções administrativas e judiciais, incluindo multa, suspensão e cassação de alvará de funcionamento, proibição de contratação pelo poder público, além de perda de acesso a incentivos fiscais.

Também há previsão de que os empresários que cometerem discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, ou injúria racial contra empregados, prepostos, mandatários, e consumidores frequentadores de seus estabelecimentos comerciais serão enquadrados por “crime contra a ordem econômica, à economia popular e as relações de consumo”.

Ainda há outra proposta na mesma linha. Segundo outro projeto apresentado pela comissão, as abordagens abusivas nas relações de consumo passariam a ser criminalizadas. Desse modo, pessoas jurídicas passariam a ser penalmente responsáveis pelos atos supostamente discriminatórios ou racistas cometidos por seguranças ou funcionários. Exemplos dessas ações seriam abordar o consumidor, no interior do estabelecimento ou fora dele, questionando sobre possível crime; fazer revista vexatória ou busca pessoal com intuito de controle de perdas de mercadorias; e mesmo impedir a saída do consumidor do estabelecimento, salvo nos casos de flagrante delito.

As penas previstas são de prestação de serviços à comunidade; interdição temporária; suspensão parcial ou total de atividades; e ainda pagamento de indenizações. “Pessoas negras que nunca se sentem absolutamente confortáveis ao ingressar em uma loja, em um shopping, vez que, não raro são alvo de vigilância em razão da cor de sua pele, bem como de abordagem e revista fora de situações de flagrante”, diz o relatório.

Criminalização das ofensas raciais

A comissão quer criminalizar ofensas raciais cometidas durante atividades esportivas, religiosas, artísticas e culturais. A pena prevista é de reclusão de dois a cinco anos e proibição de frequência, por três anos, dos locais onde a ofensa foi cometida. A mesma pena seria prevista para quem “obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas de matriz africana”.

Para os autores da proposta, ao longo da história do Brasil, as religiões afro-brasileiras foram submetidas não apenas à marginalização social, mas também à repressão do Estado, por meio de seu aparato jurídico-político e policial. “O racismo religioso constitui-se como uma das graves interfaces do racismo à brasileira que assume caráter ubíquo e fluido, interseccionando-se com outros mecanismos de opressão”, diz o texto.

Há ainda uma proposta que prevê pena de 3 a 5 anos de reclusão para quem impedir o acesso de negros a serviços como restaurantes, hotéis, casas de eventos, ginásios, salões de beleza, transporte público, entre outros.

A mesma pena é prevista para quem exige "boa aparência" utilizando critérios de raça ou cor na hora de contratar trabalhadores ou impede acesso a cargos públicos ou promoções na iniciativa privada devido ao aspecto de cor ou raça.

O mesmo vale para quem impedir o acesso de negros a entradas sociais em edifícios. A pena é triplicada em caso de divulgação do episódio por meio de publicação nos meios de comunicação social.

Incentivos para empresas “antirracistas”

Uma política de incentivos governamentais em favor das instituições privadas que implementem ações sociais voltadas à promoção da equidade racial, ao combate às práticas de racismo, discriminação, preconceito e intolerância e ao fortalecimento da capacitação profissional e da representatividade da população negra no mercado de trabalho também foi proposta pelos juristas.

Segundo o projeto, as empresas receberiam benefícios fiscais e previdenciários; acesso a linhas de crédito específicas, com taxas de juros e condições de pagamento mais acessíveis; concessão de bônus em favor das instituições privadas, incidente sobre a folha de pagamento dos seus empregados; tratamento favorecido nas contratações públicas de bens, serviços e obras; e certificação pública das instituições privadas aderentes e que atendam aos requisitos estabelecidos na lei, numa espécie de selo social de boas práticas.

Recursos para qualificação

Por meio de uma indicação, a comissão sugere que seja estabelecido percentual mínimo de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para qualificação profissional de negras e negros; que o acesso a recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por meio de empréstimos ou outras formas de financiamento, seja condicionado à adoção de critérios relacionados ao atendimento de políticas afirmativas de equidade racial pelas empresas; e que informações sobre raça e cor sejam obrigatórias no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), na Relação Anual de Informações Sociais (Rais), no eSocial e em outros sistemas de informação sobre admissão e dispensa de empregados do governo federal.

Segurança pública

Na área de segurança pública, os juristas apresentam um projeto de lei para “combater a violência e o racismo institucional nos órgãos e políticas de segurança”. Entre as medidas propostas está o monitoramento de profissionais de segurança com o perfil violento ou discriminatório, padronização de abordagens, uso proporcional da força, uso de câmeras portáteis, treinamento periódico das equipes sobre racismo institucional e “filtragem racial”, entre outros.

Para a comissão, “décadas de estudos e exemplos cotidianos de abordagens motivadas por filtragem racial denunciam o racismo institucional incrustado nas instituições de segurança pública”, justificando as mudanças.

Há ainda uma proposta que altera a Constituição Federal para instituir a participação da Defensoria Pública no controle externo da atividade policial. A justificativa foi a de que o Ministério Público, órgão responsável por fazer esse acompanhamento, estaria atuando de forma insuficiente, “visto que, mesmo existindo o dever legal de monitoramento do uso da força policial, os dados evidenciam um descontrole do exercício de polícia”, diz a proposta.

Busca e apreensão

O relatório propõe também alterações no Código de Processo Penal em relação ao procedimento de busca e apreensão para “garantir o respeito à dignidade e aos direitos à privacidade, inviolabilidade de domicílio e moradia”. Um dos principais pontos da proposta é que a busca domiciliar deverá sempre ser precedida da expedição de mandado judicial. Esse documento deverá ter informações precisas sobre a moradia ou estabelecimento a ser revistado. Toda operação deverá ainda ser filmada.

Ainda sobre o Código de Processo Penal, outro projeto traz regras para a realização de procedimentos de identificação de suspeitos por meio de reconhecimento e imagens. Para os juristas, as mudanças vão ajudar a evitar a prisão de inocentes, permitir maior nível de confiança nas evidências colhidas no sistema de justiça e combater o racismo institucional, “que muitas vezes ocorre a despeito da intenção consciente de profissionais do sistema e das testemunhas envolvidas “.

Também há uma sugestão para instituir no Código Penal o conceito de “condição de vulnerabilidade por força de determinações econômicas, sociais, raciais e outras”, que poderia ser usado como atenuante das penas em alguns casos.

Homicídio qualificado e drogas

Em um projeto que pede mudanças no Código Penal, os juristas defendem que o crime de homicídio seja qualificado em função da vulnerabilidade da vítima por força de condições econômicas, sociais, raciais, autodeterminação da identidade de gênero ou de orientação sexual. Para os juristas, a medida teria impacto na redução do número de mortes violentas de pessoas negras.

Outra proposta defende que as penas para o crime de tráfico de drogas leve em consideração circunstâncias atenuantes, como se o réu é primário, possui bons antecedentes e não pertence a organização criminosa. “É medida salutar contra o encarceramento em massa e que deve ser, de modo urgente, implementado pelo Parlamento”, defende a comissão.

Diversidade nos julgamentos

Há ainda uma proposta que prevê que o sorteio de jurados obedeça ao critério de possuir pelo menos 1/3 de mulheres e 1/3 de pessoas negras. Se as pessoas negras forem dispensadas pela defesa ou acusação, ou se tiverem algum motivo para suspeição, o julgamento será adiado. Novos jurados serão sorteados até que se forme um conselho de sentença que atenda aos requisitos de gênero e raça.

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