Há momentos em que é melhor apelar à imaginação para entender a política. Nestes momentos, a literatura ajuda a explicar os vaivéns do cotidiano mais do que muita pesquisa minuciosa ou laivo iluminado de interpretação. Como é possível que, diante de tanto descalabro moral, as pessoas votem em consolidar uma situação governamental cujos pecados são expostos sem qualquer remorso e até mesmo com júbilo pelos que se consideram vitoriosos de antemão? Não é o próprio presidente quem diz que, afinal, tudo no mundo da política é mesmo sujeira e, portanto, de pouco valem as distinções entre bons e maus? Não foi de longe, de Paris, que, logo no início das denúncias de corrupção, o presidente, instruído por seus advogados, disse que todos fazem caixa 2, "coisa normal", misturando assim o crime de corrupção dos mensaleiros que receberam dinheiro vindo do Tesouro, por intermédio de cumplicidades administrativas e políticas, para comprar votos no Congresso com o delito dos candidatos que não declaram recursos provindos do caixa 2 das empresas?

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Por que estranhar que alguns artistas ou intelectuais tenham introjetado tudo isso e, à guisa de esconderem sua própria falência moral (e também intelectual), proclamem que a eficácia na obtenção dos resultados suplanta a norma moral, deixando Maquiavel corado quando se pretende que foi dele que retiraram tal barbaridade? No fundo, em vez de pensamento, expressam apenas conformismo, acomodação. Se as coisas melhoraram para o povo, justificam, por que deveriam incomodar-se com os meios que permitiram essa suposta melhoria? Transformam assim o inocente povo em culpado pela descaracterização moral deles, assim como o presidente já tornara "o sistema" culpado pelas transgressões, pelos "erros", dos "companheiros".

Há muitos anos me refiro a alguns dos personagens principais da cena política dominante no Brasil e seus aduladores dizendo que são "macunaímicos". Entretanto, servindo-me do conhecido personagem de Mário de Andrade, no fundo estarei quase perdoando os desvios de conduta. Macunaíma é o "herói sem caráter". Mas, neste caso, a palavra caráter quase assume seu sentido em espanhol: sem característica, que se adapta facilmente a situações variáveis, mais do que de "mau caráter". Há a ausência do bem e do mal, de ambos, não uma distinção frouxa entre eles. Trata-se, portanto, de uma inclinação ao oportunismo, sem necessariamente implicar uma transgressão ou mesmo em um juízo moral. Bem pensando, talvez fosse melhor buscar nas Memórias de um Sargento de Milícias recursos para entender a "moral" de alguns entre nossos governantes e de certos intelectuais que os enaltecem, compreendendo-os em um contexto que, sem o negar, ultrapassa o comportamento individual sem-caráter de Macunaíma.

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Nas Memórias o bem e o mal nunca aparecem em sua inteireza, há um jogo entre eles, um sistema no qual suas referências estão presentes, nota Antônio Cândido numa magistral interpretação da obra de Manoel Antônio de Almeida. (1) Admite-se certo abrandamento entre norma e conduta, dotando os personagens de "flexibilidade moral", mas não se elimina a norma.

A ordem (o respeito à lei) é um vago princípio abstrato; a liberdade, um capricho. Passar de um universo ao outro (da norma à transgressão, da ordem à desordem) não impõe culpa: "As pessoas fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém merece censura". Noutro trecho: "O remorso não existe, pois a avaliação das ações é feita segundo a sua eficácia". Disso tudo resulta que o herói do livro, Leonardo Filho, vive em um universo cultural em que há a aceitação do homem "como ele é, um misto de cinismo e bonomia".

Os personagens se movem em um balé entre o lícito e o ilícito, num ambiente permeado por uma tolerância corrosiva que aceita como válida a realidade tanto para lá como para cá da norma e da lei. Forma-se uma "dialética da malandragem".

Pode haver descrição melhor para nossa realidade política atual? Não se trata de mero oportunismo no caso dos personagens a que me refiro, mas de rechaço aos aspectos da cultura ocidental que, transposta para as Américas, encontrou acolhida nos Estados Unidos onde "uma presença constritora da lei, religiosa e civil, plasmou os grupos e os indivíduos, delimitando os comportamentos graças à força punitiva do castigo exterior e do sentimento interior de pecado", diz Antônio Cândido. Em nossas plagas, abaixo do Equador, onde não haveria pecado, a lei é frouxa para constranger, a impunidade impera. E durma-se com um barulho desses.

Mas essa é precisamente a questão: estamos assistindo ao desdobramento da marcha da insensatez, recuando no tempo, para mergulharmos no que há de pior do "homem cordial" tão criticado por Sérgio Buarque como oposto à democracia, na troca tradicional de favores, na concepção de que "aos amigos tudo, aos inimigos a lei", na confusão entre público e privado e no patrimonialismo moderno que resulta em sanguessugas e mensaleiros. Isto tudo sob as vistas cínicas e prenhes de bonomia do Grande Padrinho, que, acima do bem e do mal, preside não o Brasil, mas a "República da Malandragem". Essa, para parafrasear os desiludidos com a República de 1889, não é a República de meus sonhos, nem a da maioria dos brasileiros.

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(1) Antônio Cândido "A dialética da Malandragem" in: O discurso e a cidade, São Paulo, Duas Cidades, 3.ª edição. As citações entre aspas são desse ensaio.