Uma resolução editada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) que reforça a laicidade na prática psicológica pode violar a liberdade de consciência e culto garantida pela Constituição Federal aos profissionais do setor. O documento foi publicado no último dia 18 de abril.
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A normativa sete do dia seis de abril reforça diversas proibições já amparadas pelo Código de Ética do CFP, como o de induzir o paciente a crenças religiosas. No entanto, a nova resolução, em seu artigo 3°, incisos V e IX, aprofunda as restrições ao vetar “a utilização do título de psicóloga ou psicólogo associado a vertentes religiosas”; bem como o “uso de crenças religiosas em publicidades e propagandas”.
Além desses itens, o texto assinado pelo presidente da entidade, Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, também demostra fazer uma diferenciação de tratamento entre as religiões de matriz africanas e as demais religiões.
No inciso VII do artigo 3°, o CFP veda ao psicólogo “exercer qualquer ação que promova ou legitime práticas de intolerância e racismo religioso contra indivíduos e comunidades de matriz africana, indígenas e tradicionais”. Leia a íntegra do texto.
O texto chamou a atenção do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBRD), que emitiu um parecer técnico sobre o assunto na última quarta-feira (26). Para a entidade, em nome da laicidade na profissão, o CFP estaria “tolhendo a manifestação religiosa da atividade profissional da psicologia”, atitude que contraria preceitos constitucionais.
“Na tentativa de estabelecer uma dicotomia rígida entre o exercício profissional da psicologia e a pessoa – provavelmente religiosa – que a exerce, o Conselho violou diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, sobretudo o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCIP), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, todos os quais tratam do direito à plena liberdade de consciência e religião e crença”, alegou o Grupo de Estudos Constitucionais e Legislativos (GECL) do IBDR.
O parecer também aponta que a resolução do CFP ignora a influência e o impacto da religião no desenvolvimento da atividade profissional. “No que diz respeito ao campo profissional da Psicologia, sabemos que as influências e valores religiosos fazem-se presentes na vida dos(as) profissionais, mesmo tendo um código de ética para balizar a atuação da profissão, e isso independente do credo ou confissão religiosa, ou a negação deles a partir de uma crença secularista”, aponta o IBDR.
E acrescenta: “O caráter da resolução publicada pelo CFP aproxima-se mais do ateísmo do que da equilibrada separação colaborativa entre o espiritual (Igreja) e o secular (Estado), sendo esta última, conforme exposto alhures, a adotada pela Constituição Cidadã.”
Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo também ressaltam que o documento editado pelo Conselho Federal viola amplamente a liberdade religiosa garantida pelo ordenamento brasileiro. O advogado e pastor batista, Marcelo Santiago, argumenta que o artigo 5° da Constituição Federal “garante a todos a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença”.
“A rigor, eu, advogado, por exemplo, não poderia jamais ser proibido pela Ordem dos Advogados do Brasil a anunciar que sou um ‘Advogado Cristão’. Um médico não poderia jamais ser proibido de anunciar-se espírita, ou adepto de seja qual for a sua religião, ou de fazer uma leitura bíblica com um paciente, pelo Conselho Federal de Medicina. Um psicólogo, por sua vez, não poderia jamais ser proibido, sob pena de sofrer punições contra o exercício de sua profissão, de anunciar que é um ‘Psicólogo Católico’ (por exemplo), mas é exatamente isso que a resolução promove e ainda mais”, afirma Marcelo.
Comentando os incisos V e IX no artigo 3°, Marcelo afirma que a resolução impede que um psicólogo declare sua religião, ligando este fato ao exercício de sua profissão. “A depender da interpretação, por conta da vaga redação, é possível até um psicólogo ser punido por realizar um atendimento com um escapulário à mostra em seu pescoço, um crucifixo na parede ou por citar um versículo bíblico durante o atendimento”, exemplifica.
Professora de Filosofia do Direito da Universidade Mackenzie, Ângela Gandra Martins explica como a resolução limita a atividade profissional dos psicólogos.
“Dentro de uma normalidade nenhum profissional poderia impor a sua crença. Agora, negar a vertente espiritual que possa haver dentro de um caso psicológico, isso limita o exercício da profissão. A psique de uma pessoa tem uma série de fatores que influenciam. É preciso ver se essa legislação está sendo drástica ao ponto de retirar a liberdade e a responsabilidade do psicólogo”, afirma a jurista.
Ela acrescenta argumentando que “da maneira com que essa resolução está construída, qualquer coisa que se disser pode gerar punição ao profissional”.
O que a psicologia diz
Explicando a relação entre religião e psicologia, o psicólogo Luis Enrique Paulino Carmelo argumenta que o profissional da área deve considerar as crenças de seus pacientes dentro do processo terapêutico, o que estaria intimamente ligado à condição humana.
“Qualquer psicólogo clínico sabe que, não poucas vezes, os pacientes trazem questões pessoais e existenciais ligadas diretamente à prática religiosa. E mais, em uma enormidade de casos a vivência religiosa do paciente torna-se um fator terapêutico tão mais profícuo e eficiente que as próprias técnicas e ferramentas utilizadas dentro do setting terapêutico”, diz Enrique.
Ele acrescenta que “a psicoterapia deve se voltar para a cura da alma”. Já a religião tem como finalidade a “salvação da alma”.
“Tanto uma quanto outra têm suas finalidades bem definidas, mas isso não quer dizer que ao psicólogo não caiba conhecer e até mesmo auxiliar seu paciente em questões que concernem a suas vivências religiosas, buscando compreendê-las, abrindo espaço para um diálogo socrático, agindo com provocações a apontamentos e até mesmo utilizando-se das práticas religiosas do paciente como meios mais ou menos eficazes de se tratar aquelas demandas que foram apresentadas dentro do contexto clínico”, diz o psicólogo.
Ele defende que não se pode negar ao psicólogo o direito de “se vincular a uma religião específica e ter – para além de sua formação psicológica - uma formação doutrinal, teológica e espiritual”.
“Ao que parece, o Conselho busca apresentar um profissional que necessariamente deva estar para além de questões éticas, morais e espirituais. O profissional considerado sério e responsável seria alguém como uma máquina, fria e programada para consertar algumas outras máquinas humanas”, pontua Enrique.
A reportagem questionou o Conselho Federal de Psicologia sobre os apontamentos feitos pelos juristas e aguarda resposta para publicação.
Religião é ferramenta de estudo em outros países
Apesar de o Conselho Federal de Psicologia parecer antagonizar ciência e religião, a Associação Mundial de Psiquiatria (WPA) mostra pensar diferente. A entidade ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS) possui um setor chamado Religião, Espiritualidade e Psiquiatria (SRSP), voltado exclusivamente para o estudo da crença dentro da psiquiatria.
“Atualmente, existe uma base substancial de provas de investigação que demonstram a relevância da religião/espiritualidade (R/E) para a saúde mental”, diz a WPA em seu site. A seção foi criada em 2003.
A entidade também informa que os objetivos da SRSP são:
- incentivar e acelerar a investigação, a teoria e a prática na área da religião, espiritualidade e psiquiatria, e áreas relacionadas;
- facilitar a divulgação de dados sobre questões religiosas e espirituais, em relação à psiquiatria e domínios afins;
- desenvolver e estimular programas e cursos de educação e formação para melhorar o conhecimento, as competências e a atitude profissional relativamente à religião e à espiritualidade na prática psiquiátrica.
Sendo uma referência para diversos países, a Associação Americana de Psicologia (APA) possui um setor voltado exclusivamente para religião. A chamada “Divisão 36” da Sociedade Para Psicologia e Espiritualidade alega promover a “aplicação de métodos de investigação psicológica e de quadros interpretativos a diversas formas de religião e espiritualidade”.
A entidade também incentiva a “incorporação de resultados obtidos por trabalhos em contextos clínicos e fomenta o diálogo construtivo e o intercâmbio entre o estudo e a prática psicológica com instituições religiosas”.
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