As críticas dos leitores da Gazeta do Povo à matéria "Rivalidade sobre transposição do São Francisco é briga por autoria de erro histórico", de 6/11, revelam a necessidade de aprofundar e esclarecer melhor aspectos importantes do projeto de transposição do Rio São Francisco. Entre eles, destacam-se questões econômicas associadas ao elevado custo operacional do megassistema de bombeamento do país, comumente ignoradas e relegadas por muitos defensores do projeto.
É difícil entender como um projeto como o da transposição prosperou ileso numa época de efervescência e questionamentos políticos como a dos últimos anos. A transposição do Rio São Francisco, como carro-chefe da política hidráulica tradicional do Governo Federal no semiárido brasileiro, deveria ser vista como um dos marcos do antiliberalismo na política brasileira. Contrariamente, no governo Bolsonaro, identificado com a direita de viés liberal, houve uma defesa intransigente da obra.
Todo o projeto é antiliberal, com seu referencial histórico remontando ao final do império, há 150 anos. É um projeto mal explicado, onde prevalece a versão política divulgada pela propaganda governamental, como sempre sem compromisso com a realidade. Alega-se que a transposição seria o meio mais eficiente de se enfrentar o problema secular e recorrente da seca no Brasil e teria um custo ambiental e de oportunidade mínimo, de tal forma que seria mais barato fazer a obra do que não a fazer.
Em contraposição, os críticos associam o projeto a uma espécie de presente de grego que o governo federal impõe ao povo nordestino, dado o caráter restritivo do projeto real, com uma pequena área de influência de apenas 5% do semiárido. Questiona-se a sua prioridade, tendo em vista o alto custo econômico e ambiental frente aos pequenos benefícios sociais efetivos. O projeto vai transferir águas do Rio São Francisco para os maiores reservatórios da região, seguindo as águas, em grande parte, por trechos despovoados, pelos leitos dos maiores rios, e beneficiando diretamente poucas cidades.
No segundo governo Lula, a transposição do Rio São Francisco praticamente se institucionalizou através do Ministério de Desenvolvimento Regional, transformando-se num amplo programa hegemônico de investimentos do governo federal em obras hídricas no semiárido – condicionando, dessa forma, os principais projetos hídricos de demandas difusas dos estados na área de influência do projeto.
É fato que ocorreram fortes reações, com denúncias e contestações ao projeto desde o seu nascedouro no governo FHC, até o início das obras no segundo governo Lula, quando se produziu o fato consumado que abafou o debate público, considerado, na época, como uma etapa superada. Essa foi a estratégia política que perdurou de 2007 até 2022, e a finalização dos custosos testes do sistema de bombeamento foi feita pelo governo Bolsonaro. Nos dois anos de testes, foram gastos pelo governo federal mais de um bilhão de reais, o que representa grande parte dos custos finais do projeto com o bombeamento da água necessária para o preenchimento dos reservatórios intermediários para assegurar o fluxo contínuo no Eixo Norte do Rio São Francisco até o Rio Grande do Norte.
Inaugurada simbolicamente a transposição por Bolsonaro, num grande comício na margem do Rio Piranhas-Açu, no RN, no início de 2022, logo, por falta de recursos orçamentários específicos, a água da transposição parou de chegar ao RN. É essa a realidade atual em que se encontra o projeto, aguardando as contrapartidas prometidas pelos estados, seguidamente acordadas com o governo federal, incluindo-se aí também o de Bolsonaro.
Então, passada a longa fase de oba-oba da construção da megaobra bancada com os bilionários recursos previstos no orçamento do projeto, chegou a hora de a onça beber a água da transposição, como se diz no Nordeste. Como um verdadeiro choque de realidade, veio a pesada conta de meio bilhão de reais por ano da manutenção da transposição, de responsabilidade direta dos estados, que já cuidam de viabilizar meios de arrecadar os recursos com as suas populações.
Vale ressaltar os elevados valores do custeio anual da transposição quando se compara os mesmos com os investimentos na área de recursos hídricos do Governo Federal no semiárido brasileiro. Com os dispêndios anuais do custeio da transposição, o governo federal teria condição de desenvolver um amplo programa permanente de distribuição de água em toda a região – com meio bilhão de reais se constrói um sistema adutor para atender a 250 mil pessoas. Portanto, o problema é essencialmente político, com o agravante do consenso e falta de interesse no seu enfrentamento. Resta saber: até quando?
* João Abner Guimarães Jr. é professor titular aposentado da UFRN, doutor em Hidráulica e Saneamento pela USP.
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