O risco à democracia gerado pela circulação de notícias falsas na internet não deve levar juízes a restringir a liberdade de expressão sem conceitos legais claros, precisos e determinados. Sem isso, a contaminação do direito com conceitos vagos e típicos da luta política e ideológica - tais como “fake news”, “desinformação” e “discurso de ódio” - pode criar um “ambiente inquisitorial, emotivo, histérico e irracional de censura, estigmatização e perseguição das mensagens e dos mensageiros considerados política e ideologicamente inconvenientes”.
É o alerta do professor e diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Jónatas Machado, jurista reconhecido internacionalmente e autor de um tratado sobre a liberdade de expressão que é referência nesse campo. Ele estará em Brasília nos próximos dias 27 e 28 de setembro para participar do congresso “Liberdade de Expressão: o debate essencial”, que vai discutir recentes decisões dos tribunais superiores no Brasil que têm reorientado a jurisprudência tradicional de proteção a esse direito fundamental.
O evento é organizado pela Gazeta do Povo e pelo Ranking dos Políticos e conta com o apoio do Instituto Liberal, Instituto dos Advogados do Paraná e Federação Nacional dos Institutos dos Advogados (Fenia).
Jónatas Machado entende que a verdade é um valor essencial para o regime democrático e que falsidades comprometem a confiança no convívio social e a tomada de decisão por cidadãos. Uma das finalidades da liberdade de expressão, afinal, é a busca da verdade, ainda que o processo para alcançá-la, em relação aos fatos, não seja livre de dificuldades.
É justamente em razão disso que o debate aberto e desinibido contribui para descrever, na medida do possível, a realidade compartilhada dentro da sociedade. Jónatas Machado rejeita a ideia predominante na filosofia pós-moderna de que a verdade é relativa.
“A procura da verdade, compreendida como a conformidade entre a manifestação de uma dada proposição e a realidade dos fatos políticos, econômicos, sociais e materiais, constitui um móbil estruturante de qualquer sociedade democrática, que se materializa através da proclamação e efetivação das liberdades da comunicação, que tem, assim, como uma das direções de maior preponderância, a purificação dialógica e crítica da esfera de debate público, afastando as ideias menos aptas ou assentes em falsidades”, escreveu o professor, em artigo publicado em 2019, com a advogada portuguesa Iolanda Rodrigues de Brito, no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra.
Assim é que a liberdade de expressão, para ele, não protege discursos propositalmente enganosos, sobretudo quando atingem a reputação e imagem das pessoas, empresas ou instituições, que gozam do direito fundamental à honra. Independentemente disso, informações falsas prejudicam o mercado de ideias, a discussão de questões de interesse público e a própria busca da verdade. Ainda assim, restrições à liberdade de expressão “devem limitar-se a casos extremos, deliberados e sistemáticos de desinformação, devidamente comprovados, que representem um perigo claro e iminente para o sistema democrático”.
Abaixo, a íntegra da entrevista, concedida pelo professor por e-mail, na qual são antecipadas algumas das questões que ele vai discutir no congresso em Brasília.
No ano passado, o Tribunal Superior Eleitoral no Brasil tornou-se mais rigoroso no controle das propagandas eleitorais, suspendendo a veiculação, nas redes sociais e nas emissoras de rádio e TV, de peças audiovisuais cujo teor foi considerado “sabidamente inverídico” ou “gravemente descontextualizado”.
Sabe-se que uma das finalidades mais importantes da liberdade de expressão, num regime democrático, é permitir que os cidadãos escolham livremente e de maneira bem informada seus representantes e governantes. Como uma tutela excessiva da Justiça sobre o discurso político na disputa eleitoral pode comprometer essa finalidade?
Numa ordem constitucional dominada pelos princípios democrático e do Estado de direito, as instituições políticas, legislativas, administrativas e judiciais só podem existir, subsistir e funcionar se mediante um compromisso prévio e fundamental com a verdade. Nesta deve basear-se a formação da opinião pública e da vontade política. Daí que aqueles princípios possam ser usados para fundamentar restrições à liberdade de expressão dirigidas ao combate a práticas sistemáticas de desinformação.
No entanto, essas restrições devem ter base legal, ser excepcionais, ser devidamente fundamentadas, respeitar o princípio da proporcionalidade e ser interpretadas restritivamente. Além disso, tais restrições não podem ignorar que pessoas razoáveis podem ter opiniões diferentes porque tomam em considerações diferentes fatos ou porque os interpretam de forma diferente, sem que isso signifique que estejam a disseminar ideias “sabidamente inverídicas” ou “gravemente descontextualizadas”.
Acresce que num ambiente muito polarizado e politizado não é fácil determinar objetiva e imparcialmente quando uma afirmação é errada ou está descontextualizada. As restrições à liberdade de expressão devem limitar-se a casos extremos, deliberados e sistemáticos de desinformação, devidamente comprovados, que representem um perigo claro e iminente para o sistema democrático. A liberdade deve ser a regra, e a restrição deve ser a exceção. In dubio, pro libertate.
Em seu entender, na Europa, Estados Unidos e Brasil, ainda falta uma definição melhor de conceitos como “fake news”, “desinformação” e “discurso de ódio”, quando juízes e legisladores se colocam na tarefa de julgar e banir conteúdos no debate político?
Existe hoje uma contaminação do direito constitucional e penal por conceitos não jurídicos, de conteúdo vago e indeterminado, que nada mais são do que conceitos de luta política e ideológica. Eles visam criar um ambiente inquisitorial, emotivo, histérico e irracional de censura, estigmatização e perseguição das mensagens e dos mensageiros considerados política e ideologicamente inconvenientes. Eles impedem a discussão serena e racional.
Esse estado de coisas é claramente inconstitucional, pois cria uma zona cinzenta de incerteza jurídica acerca do que pode e não pode ser dito e impede a livre discussão de todos os assuntos de interesse público, empobrecendo a esfera de discurso público e criando situações de medo e autocensura.
As restrições devem basear-se em conceitos legais suficientemente claros, precisos e determinados (por exemplo, incitamento ao ódio e à violência), concretizados por uma jurisprudência uniforme, consistente e consensual, impermeável a uma utilização politizada e seletiva, jurisprudência essa suscetível de ser aplicada de maneira igual a indivíduos e entidades de todos os quadrantes políticos e ideológicos. A não ser assim, é o descrédito total das instituições políticas e do poder judicial.
A comunicação digital aumentou consideravelmente a exposição de políticos e autoridades a críticas dos cidadãos, muitas delas incômodas, inconvenientes, mal-educadas, controversas e mesmo equivocadas quanto à precisão factual. Num ambiente assim, fica mais difícil para as autoridades resistirem à tentação de censurar ou ao menos tentar inibir os discursos que presumem ameaçar seu prestígio, legitimidade e poder? Quando essas críticas se dirigem a membros do próprio Judiciário, com poder de julgar a permanência ou não dessas manifestações na internet, a preservação da liberdade de expressão exige maior compromisso dos magistrados com os princípios que a sustentam?
Numa ordem constitucional livre e democrática todos estão sujeitos à crítica, incluindo os juízes, pela sua conduta e pelo conteúdo das suas decisões. Mas essa crítica deve obedecer a um padrão geral de verdade, rigor e objetividade, mesmo admitindo alguns desvios causados pelo entusiasmo, a emoção ou a indignação.
Tudo deve ser avaliado de forma contextual, atendendo a todos os fatos e circunstâncias relevantes. Mas as instituições democráticas dificilmente resistirão a campanhas orquestradas e sistemáticas, com agendas políticas mais ou menos sinistras, orientadas para o insulto, a difamação e a calúnia, dirigidos contra elas e os seus titulares. A mídia social criou um contexto discursivo totalmente novo, cujos perigos para a democracia são ainda pouco conhecidos e devem ser acompanhados por todos os cidadãos e toda a sociedade civil com a maior atenção.
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