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O plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deverá retomar na próxima quinta-feira (13) a discussão sobre tornar o abuso de poder religioso um motivo para cassação de mandato político. Hoje, a Lei Complementar 64 de 1990, que regulamenta o tema, cita apenas “abuso do poder econômico ou político”.
O ministro Edson Fachin, vice-presidente do TSE e relator da pauta, está promovendo audiências antes de levar a discussão para o plenário do TSE. Na noite de quarta-feira (5), quatro membros da Frente Parlamentar Evangélica e o jurista protestante Thiago Vieira, membro do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), reuniram-se por videoconferência com Fachin.
Entre os parlamentares, participaram da audiência o senador Zequinha Marinho (PSC-PA) e os deputados federais João Campos (Republicanos-GO), Liziane Bayer (PSB-RS) e David Soares (DEM-SP). A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), cuja participação no evento estava prevista, desistiu de enviar representantes.
O processo em questão no TSE, que pode ganhar repercussão geral, gira em torno da vereadora de Luziânia (GO) Valdirene Tavares (Republicanos), que é pastora da Assembleia de Deus. Ela é acusada de usar a sua posição na igreja para promover a candidatura, influenciando o voto de fiéis. Valdirene foi reeleita em 2016.
Fachin falou pouco durante o evento, que durou cerca de 45 minutos, mas disse ao grupo que valoriza e entende a importância da religião para a sociedade brasileira e o Estado Democrático de Direito.
Jurista diz a Fachin que TSE pode ferir pacto internacional sobre liberdade religiosa
O jurista Thiago Vieira, que participou da reunião representando o IBDR, diz que defendeu a “inexistência da previsão legal de abuso de poder religioso, tanto na Constituição quanto na legislação específica, que é a Lei Complementar 64/90” (Lei de Inelegibilidade). Ele também falou ao ministro que as restrições de liberdades devem acontecer apenas por lei e somente quando não haja outra medida possível.
A eventual previsão pelo Judiciário de punições para o abuso de poder religioso, segundo Vieira, entraria em choque com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário, por afrontar a liberdade religiosa. Para o jurista, a liberdade de professar a fé ficaria limitada, porque seria suscitada uma dúvida nos líderes religiosos entre aquilo que poderia ser considerado abuso de poder religioso e o que não.
O jurista manifestou a Fachin uma preocupação quanto às dificuldades que os líderes religiosos poderiam enfrentar para realizarem seu trabalho durante os 45 dias de campanha eleitoral. “Nesses 45 dias, quando o pastor ou o padre abrirem a boca, vai ser considerado abuso ou vai ser considerado influência? É natural que um padre, um pastor, um líder religioso exerça influência. Por isso que ele é líder”, afirma.
Vieira diz ainda que a lógica aplicada nesse caso poderia acabar extrapolando para outras manifestações culturais que, em alguma medida, têm aspectos de religião, como a cultura dos influenciadores digitais. “Não é à toa que figuras tipo Felipe Neto são chamadas de ‘influencer’. Eles influenciam as pessoas que os seguem. Eles também vão ser punidos por abuso de poder religioso? A religião pode também ser imanente, pode também ser secular. Quando você pega um influencer digital desse, não deixa de ser uma espécie de religião”, observa.
Linha entre o que é ou não abuso de poder religioso é pouco clara, afirma jurista
Para Vieira, uma eventual decisão do TSE favorável à punição do abuso de poder religioso representaria uma mordaça à prática religiosa. “Muitas pessoas não vão mais querer falar sobre política, porque podem ser punidas”, afirma.
Líderes religiosos estariam o tempo todo sob a ameaça de uma punição, o que feriria a liberdade religiosa, avalia o jurista. “Você coloca uma espada de Dâmocles em cima da cabeça dos líderes e dos fiéis, aquela espada que fica pendurada por um fio acima da sua cabeça o tempo inteiro. A qualquer momento a espada pode cair. Isso afronta a cidadania, o pluralismo político”, diz.
Vieira também chama a atenção para a dificuldade de se traçar uma linha clara entre o que é e o que não é abuso. “Qual é a metodologia semântica para saber o âmbito do que é religião no discurso e do que não é? Quem vai dizer qual é essa metodologia semântica? ‘Aqui foi religião, aqui não foi. Aqui foi manipulação, foi influência…’ Isso é muito gasoso. Não é nem líquido, é gasoso. Você não consegue nem enxergar”, diz. “Precisamos de segurança jurídica, de coisas sólidas, que nós enxergamos e tocamos. Isso é característico da lei. A lei tem esse papel. E a lei emana do povo pelo Congresso Nacional.”
Fachin reafirma compromisso com o diálogo
O ministro Edson Fachin reafirmou aos participantes do encontro seu compromisso, como magistrado, com o diálogo. Ele reconheceu a importância da religiosidade na composição da identidade das pessoas e da sociedade. O magistrado contou que, em sua trajetória como ministro titular do TSE, já apreciou diversos casos em que se questionava o abuso do poder religioso em eleições.
Segundo o ministro, o seu voto no caso em julgamento é fruto de seus estudos ao longo dessas experiências e tem o intuito de estabelecer uma abordagem unificada da Justiça Eleitoral na questão do uso do discurso religioso no processo eleitoral.
“Tenho a preocupação prática de que não deveríamos deixar surgir uma miríade de casos nos Tribunais Regionais Eleitorais e, talvez, passar à Justiça Eleitoral uma orientação para evidenciar que as hipóteses de abuso do poder religioso são raras e excepcionais e então estabelecer esses filtros”, explicou.