Nos últimos meses, além da pandemia, o debate público brasileiro tem sido dominado por outro grande tema: a liberdade de expressão. Uma série de acontecimentos tem trazido o assunto à tona, como as discussões sobre fake news que ocorrem no Poder Judiciário e no Legislativo, a suspensão de perfis bolsonaristas em redes sociais e a chamada cultura do cancelamento, cuja manifestação mais recente foi a demissão de um jornalista por uma opinião taxada de homofóbica.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem tomado decisões controversas, como a que definiu a constitucionalidade do inquérito das fake news e a decisão do ministro Alexandre de Moraes de derrubar alguns perfis bolsonaristas em redes sociais. No Poder Legislativo, as fake news também estão em evidência, com a tramitação de um projeto de lei que se propõe a combatê-las, mas resvala na censura.
Fora do âmbito estatal, a tendência é parecida. O filósofo Olavo de Carvalho deixou de ter acesso ao PayPal, sua principal fonte de pagamentos, depois de uma pressão do movimento Sleeping Giants Brasil, que acusou Olavo de ser propagador de fake news.
No Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Edson Fachin lançou uma proposta que colocou em ameaça a liberdade de expressão em templos religiosos: a de criar o crime eleitoral de “abuso de poder religioso”, para evitar que lideranças religiosas usem o templo para falar sobre política.
Uma questão se torna pertinente nesse contexto: o controle excessivo da liberdade de expressão não seria uma ameaça ainda maior para a democracia do que os próprios abusos apontados?
Definição vaga do que são “fake news” e “discurso de ódio” abre espaço para arbitrariedade, observam especialistas
Victor Sales Pinheiro, doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), considera que “tanto a disseminação incontrolável de fake news quanto o cerceamento da liberdade de expressão” são ameaças à democracia. Mas, para ele, termos como “fake news” e “discurso de ódio” ainda têm definição vaga, o que abre espaço para a arbitrariedade.
“Por exemplo, a maioria dos brasileiros acredita na versão bíblica de criação do mundo e de moralidade sexual. Há intransigentes que consideram essa visão de mundo cientificamente falsa e moralmente odiosa, que discrimina mulheres ou homossexuais. O que fazer? Proibir a pregação cristã? Proibir toda a ciência e filosofia produzida há dois mil anos com base nessas premissas?”, questiona Pinheiro.
Para o sociólogo Lucas Azambuja, professor do Ibmec BH, quando o discurso sobre fake news invade o Estado, é fácil abrir um precedente para a perseguição de ideias. “Na medida em que se dá poder para o Estado decidir o que é fake news e o que não é, esse critério sempre vai servir aos interesses de poder de quem controla o Estado. Em vez de haver um debate amplo, em que as pessoas, por si mesmas, vão buscando as informações e formando seus julgamentos, há um controle por parte do estado, com todos os seus mecanismos repressivos, sobre determinados grupos. E essa perseguição é legitimada como ‘combate às fake news’”, diz.
Nesse contexto, segundo Azambuja, “fake news é tudo aquilo que não corresponde aos interesses de quem define o que é fake news”. “É um mecanismo que abre espaço para quem estiver no governo perseguir adversários políticos e grupos que ameacem seu poder e sua permanência no poder”, afirma o sociólogo.
Pinheiro diz que a grande influência de ideias relativistas no pensamento contemporâneo compromete a coerência da busca pela liberdade de expressão. “As ideologias relativistas, como o pós-modernismo, negam a verdade objetiva do conhecimento e, portanto, dão margem ao império da retórica, da manipulação e da falsificação das informações. É a consequência do perspectivismo de Nietzsche: ‘Não há fatos, só interpretações’”, diz.
O professor recorda que muitas das pessoas que defendem a criminalização das fake news aderem a filosofias relativistas, o que é “claramente uma contradição”. “Se aceitam a tal ‘pós-verdade’, apenas uma máscara a mais do relativismo filosófico, não podem se voltar contra as notícias falsas, porque não há verdade com a qual compará-las”, afirma.
Empresas também sofrem o impacto da perseguição à liberdade de expressão
A perseguição à liberdade de expressão é comum não só no âmbito do poder público, mas também no setor empresarial. Recentemente, o jornalista Leandro Narloch foi demitido da CNN Brasil por pressão de grupos LGBT, depois de manifestar uma opinião que foi taxada de homofóbica. Já o filósofo Olavo de Carvalho teve sua conta removida do PayPal depois de pressão do movimento Sleeping Giants Brasil, que o acusava de fake news.
Para Azambuja, os grupos sociais que realizam pressão desse tipo sobre as empresas tendem a ser os mesmos que fazem lobby no estado por regular a liberdade de expressão. No caso da CNN, para ele, há o agravante, do ponto de vista ético, de se tratar de um órgão de imprensa. “Supostamente, teria que haver liberdade de expressão neste veículo de comunicação, abertura ao contraditório, a diferentes visões”, observa o sociólogo.
Pinheiro concorda que os ataques à liberdade de expressão no setor empresarial também são uma ameaça à democracia, mas faz a ressalva de que “a cultura empresarial é privada e não obriga ninguém a usar dos seus meios de comunicação”. Para ele, é menos grave que empresas censurem jornalistas ou intelectuais, já que eles têm o seu direito de liberdade de expressão garantido por outros meios de comunicação.
“É claro que o monopólio dos canais de expressão ou informação pode tornar a censura privada próxima de uma censura pública, mas nunca se poderá comparar com a censura feita pelo próprio Estado, que impede a expressão em qualquer meio privado, como acontece em países comunistas como a Coreia do Norte, em que o Estado monopoliza os meios de informação e comunicação”, diz.
O professor acrescenta que os ataques à liberdade de expressão no âmbito empresarial podem acabar gerando uma cultura semelhante no poder público. “Com essa censura privada, esvazia-se a cultura da liberdade, o que pode resultar na censura pública, promovida pelo próprio Estado”, afirma.
Duas definições para a liberdade de expressão
Pinheiro diz que há duas definições mais usuais do conceito de liberdade de expressão na filosofia jurídica: uma da doutrina americana e outra da alemã. O Brasil, segundo ele, estaria mais próximo da doutrina alemã, em que a liberdade de expressão tem menos primazia sobre outros direitos.
“A constituição americana considera que não deve haver regulação jurídica e política da liberdade de expressão, sob o risco de censura, pois nessa liberdade se baseia o mercado livre de ideias, o pluralismo, a autonomia da democracia. O Estado não tem autorização para determinar quem pode pensar o quê. O limite que a jurisprudência americana delineou a esse princípio são as expressões que estimulem o crime e a violência iminente e imediata, tolerando até mesmo alusões remotas ou vagas a ações consideradas imorais ou ilegais”, explica.
Na doutrina alemã, de acordo com Pinheiro, a liberdade de expressão sofre mais o contrapeso de aspectos como o direito de não ser insultado e desonrado e a proibição de discursos que promovam ódio e violência contra grupos por questões de raça, etnia, sexo ou religião. “Por exemplo, o Estado reconhece que a discriminação e o genocídio nazistas contra os judeus os coloca num patamar especial de proteção contra a possibilidade de repetição dessa injustiça inominável. Daí a criminalização do discurso de incitamento de ódio antissemita e de negação do holocausto”, diz o professor.
Ainda que o Brasil tenha um entendimento sobre liberdade de expressão mais próximo da escola alemã que da americana, o STF já definiu que a liberdade de expressão tem caráter preferencial no ordenamento jurídico brasileiro. Em decisão liminar em 2018 e definitiva em 2020, que garantiu livre manifestação de ideias em universidades, o tribunal impediu a busca e apreensão de materiais de campanha eleitoral em ambientes universitários, por entender que a liberdade de expressão estava acima de eventuais abusos cometidos.
Criação do crime de “abuso de poder religioso” é rechaçado pelo TSE
Nas últimas semanas, o Poder Judiciário colocou em risco a liberdade de expressão no âmbito religioso. O ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Edson Fachin lançou a proposta de criar o crime eleitoral de “abuso de poder religioso”, para evitar que lideranças religiosas usem o templo para falar sobre política. A proposta foi rechaçada pelo tribunal.
Para o jurista e teólogo Warton Hertz, membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Religião, a ideia de controlar o discurso religioso com a criação de um crime eleitoral geraria um estado de vigilância que comprometeria a liberdade de expressão nos templos. “No momento em que alguém está sendo vigiado, no sentido de que há uma lei dizendo que não se pode ter posicionamentos políticos, vai ficar tolhido o tempo todo, vai ficar preocupado o tempo todo se aquilo pode ser interpretado como um discurso político”, diz.
Ele recorda que “a religião abarca toda a vida, não é só ritual”, e que a ideia de separar totalmente a vida política do discurso religioso é contrária à liberdade de expressão. “Não existe nenhum tipo de conhecimento humano que tenha tanta pretensão de chegar a uma verdade a respeito de tudo como a religião. Quando você tem uma fé, vai acreditar que ela é uma resposta para os males do homem, uma solução final para tudo. Aquela crença vai ter alcance para todas as áreas da sua vida. É impossível que, em um momento ou outro, não se chegue a assuntos relacionados com política”, afirma Hertz.
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