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O ritmo da vacinação contra Covid-19 no Brasil tem caído nas últimas semanas, conforme dados de um painel do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP). No fim de março, o país chegou a vacinar quase 1 milhão de pessoas num só dia. Em abril e maio, em diversas datas, mais de 500 mil primeiras doses foram aplicadas – o último dia em que isso ocorreu foi em 18 de maio, quando houve 503 mil aplicações de primeiras doses. Na semana passada, o dia com mais vacinações foi a terça-feira, 25 de maio, com 400 mil primeiras doses aplicadas.
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Há quem defenda que, além da falta de vacinas, existiriam outros fatores relevantes para a queda no ritmo da vacinação. Uma das hipóteses – defendida inclusive pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) – é que a prioridade dada a pessoas com comorbidades, em vez da vacinação pela faixa etária, teria atrasado o processo de vacinação.
Para especialistas consultados pela Gazeta do Povo, a tese é equivocada. O impacto da priorização de grupos com comorbidades, segundo eles, não foi relevante para a lentidão. Além disso, eles avaliam que deixar para trás esse público seria trair o próprio objetivo da vacinação.
“O que está reduzindo a velocidade é a falta de vacinas”, diz o epidemiologista José Cássio de Moraes, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Saúde de São Paulo. “Do ponto de vista logístico e de organização, seria mais fácil organizar por idade, mas você desprezaria o objetivo principal da vacina, que é a proteção contra casos graves e mortes”, afirma.
A médica Flávia Bravo, membro da Comissão de Revisão de Calendários de Vacinação da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), avalia que a escolha dos grupos prioritários não pode ser considerada um erro. “Diante de uma pandemia, o principal problema [é o dos brasileiros] que adoecem, que internam e que morrem. É preciso identificar: existem grupos que estão adoecendo mais, morrendo mais, internando mais e sobrecarregando mais o sistema de saúde? Porque eu tenho que desafogar o sistema de saúde”, explica.
Ritmo da aplicação só pode ser valorado conforme as doses que chegam às salas de vacinação, diz especialista
Um artigo recente do economista Daniel Leichsering, da Verde Asset Management, ecoa a tese de Arthur Lira e afirma que “atribuir a lentidão atual à falta de oferta é uma desculpa que não condiz com a realidade”.
“A disponibilidade atual de vacinas seria suficiente para dobrar o ritmo atual de vacinação diária. Ter disponibilidade de vacinas e não aplicar é simplesmente inaceitável”, diz Leichsering, apoiando seu argumento em gráficos que comparam o número de doses das vacinas distribuídas aos estados com o número de vacinas aplicadas.
Já para Flávia Bravo essa comparação é “um erro metodológico bastante grosseiro”. “Se eu quero fazer uma análise da efetividade do programa, eu teria que comparar o número de doses que chegam por dia na ponta com quanto eu aplico”, explica. “O número do que se entrega aos estados hoje não é o que chega às salas de vacinação. A depender do estado com que você está lidando, as dificuldades são muito grandes para distribuir para onde é aplicado. Não é o estado que vacina. É o estado que tem que entregar as vacinas na ponta, e às vezes essa ponta é muito difícil de ser alcançada”.
Por isso, segundo Flávia, é preciso levar em conta as grandes dificuldades logísticas que o tamanho do Brasil e a falta de infraestrutura de algumas regiões impõem. Com as doses chegando a conta-gotas, é normal que o processo se torne ainda mais atravancado e lento.
Moraes afirma que o país teria totais condições de vacinar a população até o fim de 2021, caso houvesse disponibilidade de vacinas. “Nós temos no Brasil 36 mil salas de vacina. Se você tiver 50 doses para cada sala, o que é uma produção até baixa, porque seriam 10 doses por hora, você conseguiria aplicar quase 2 milhões de doses por dia. Em um mês, seriam quase 50 milhões de pessoas. Estamos subutilizando o sistema de vacinação. O que falta é vacina”, salienta.
Embora a escassez de doses seja o grande motivo para a lentidão na aplicação, a recente decisão do Ministério da Saúde de liberar a vacinação por faixa etária, segundo os especialistas, não é equivocada. “O momento permitiu. É uma conjunção de [futura] disponibilidade de doses e o fato de já termos uma cobertura vacinal maior”, diz Flávia.
Para ela, o baixo número de pessoas com comorbidades que se apresentaram para receber a vacinação e a maior segurança na expectativa de fornecimento dos próximos lotes de vacinas justificam a mudança no critério.
Setor privado poderia ser aproveitado, mas não foi chamado
Uma evidência de que o motivo da lentidão não é a velocidade da aplicação, mas sim a falta de doses, é que o governo nem sequer recorreu ao setor privado para pedir ajuda na vacinação.
Geraldo Costa, presidente da Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC), comenta que havia uma preocupação no setor privado sobre uma possível pressão no sistema - por causa da coincidência da vacinação contra a Covid-19 e contra a Influenza. “Como atrasou a chegada de vacinas, não teremos nem esse problema. Realmente, a grande dificuldade que o Brasil vai ter para superar esse momento é ter doses suficientes”, destaca.
Costa afirma também que a ABCVAC já se colocou à disposição do Ministério da Saúde, que acionou a associação em outras campanhas. Há mais de 30 mil postos de vacinação públicos no Brasil, e cerca de 15 mil em clínicas particulares, segundo ele.
Até agora, o próprio Ministério da Saúde não viu a necessidade de pedir apoio das clínicas de vacinação. “Hoje, não adianta nem entrar, porque não tem imunizante suficiente para distribuir. Se a gente detectar que a dificuldade do governo é em aplicar, com certeza a gente vai entrar nessa operação para ajudar a acelerar o processo. É um dever nosso”, afirma. “Pelo volume de doses chegando, acho que o governo tem capacidade de aplicar tudo com as suas próprias estruturas”, avalia.