O prazo determinado pelo governo do Rio de Janeiro para a coleta de sugestões para a segunda versão do Plano Estadual de Redução da Letalidade Policial terminou na semana passada. A ordem para a reestruturação do plano veio do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, a “ADPF das Favelas”, que tramita na Corte.
Desde o início de junho, o governo fluminense recebeu propostas do Ministério Público (MP-RJ), Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DP-RJ), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), parlamentares e de entidades de direitos humanos que participaram de audiência promovida pelo Executivo. Nos documentos com as sugestões, DP-RJ e OAB alegaram a existência de "racismo estrutural" em ações das forças de segurança.
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Após determinação do STF, em março deste ano, o governo do RJ apresentou, por meio do Decreto 47.802/22, um conjunto de medidas para reduzir a letalidade policial no estado, com foco nas favelas – alvo de maior ocorrência de confrontos entre criminosos e agentes de segurança. Fachin, entretanto, rejeitou o plano, alegando que o decreto não contou com a participação da sociedade civil em sua elaboração. Em 27 de maio, o ministro determinou que o programa fosse refeito e que o Executivo estadual coletasse sugestões de órgãos do poder público e entidades da sociedade civil.
Agora, encerrado o período de coleta de sugestões, o governo do estado tem até o final de julho para entregar o novo documento ao STF. Segundo a determinação de Fachin, o Executivo não é obrigado a adotar as sugestões apresentadas, mas deve enviar resposta aos propositores justificando as razões pelas quais as sugestões não foram acolhidas.
A ADPF 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, gerou restrições progressivas às operações policiais no Rio de Janeiro a partir de junho de 2020. Dentre as várias determinações do Supremo, estão a proibição a operações nas comunidades durante a vigência da pandemia, exceto em casos “absolutamente excepcionais”; vedação do uso de helicópteros; instalação de câmeras nas fardas dos policiais; dentre outros.
Parte das restrições recebeu críticas de especialistas, pois eles apontam riscos à segurança pública com a suspensão das operações. Recentemente, o secretário de Polícia Militar do estado, coronel Luiz Henrique Marinho Pires, atribuiu ao STF a culpa pela migração de criminosos de outros estados para o Rio de Janeiro, os quais estariam se sentindo protegidos diante da decisão da Corte de restringir as ações policiais.
Confira as propostas enviadas ao governo do Rio de Janeiro para o plano de Plano Estadual de Redução da Letalidade Policial:
Defensoria Pública
A Defensoria Pública do estado propôs a meta de redução de 70% da letalidade policial no prazo de um ano. Para isso, fez 30 sugestões. Entre elas há medidas polêmicas, como a regulamentação do conceito de “absoluta excepcionalidade”, citado por Fachin sem maiores detalhamentos na ADPF 635. Para a DP-RJ, as operações policiais nas favelas podem ser autorizadas somente em casos bastante específicos, como na ocorrência de sequestros em curso dentro de comunidades ou de conflitos armados entre facções.
A Defensoria também propõe a inserção de disciplina sobre “Relações Étnico-raciais” nos cursos de formação, aperfeiçoamento e promoção para os policiais do estado a serem ministrados por pessoas de fora das instituições, que trabalhem com o tema do
“racismo estrutural”. A Defensoria argumenta que há uma “filtragem racial” nas ações dos agentes de segurança, que estariam vitimando mais pessoas negras devido a um suposto racismo institucional nas corporações. Nessa argumentação, o órgão chega a mencionar a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que endureceu regras para as abordagens policiais sob a justificativa de evitar o preconceito. A medida é apontada por especialistas como prejudicial à segurança pública.
Algumas medidas sugeridas pela DP-RJ:
- Investigação de casos em que há letalidade policial feita por órgão diferente do agente envolvido;
- Desvinculação dos órgãos de perícia das polícias civil e militar;
- Disponibilização de ambulâncias em operações policiais em que haja a possibilidade de confrontos armados;
- Escuta interna para ouvir demandas dos agentes de segurança.
Ministério Público
O MP-RJ sugeriu a reavaliação das ações policiais nas favelas como principal instrumento da política de segurança pública nessas áreas. Outra proposição foi sobre o aperfeiçoamento da base de dados do governo, de forma a trazer informações mais detalhadas sobre ações policiais que resultaram em morte ou lesão.
O Ministério Público pediu também maior controle sobre ações das forças de segurança que não se configuram tecnicamente como “operações policiais”, mas que estariam resultando em maior número de ocorrências de lesões e mortes do que nas operações mais complexas.
Algumas medidas sugeridas pelo MP-RJ:
- Revisão de todos os protocolos operacionais e instruções normativas relacionadas ao uso da força;
- Relatório trimestral com dados de todas as operações em que houve lesões ou mortes enviado aos órgãos de controle;
- Controle, pelos órgãos internos das polícias, do uso de munições, individualizado por agente e unidade em que atua.
Ordem dos Advogados do Brasil
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por meio das suas comissões de Segurança Pública e de Direitos Humanos e Assistência Judiciária, promoveu uma audiência na seccional do Rio de Janeiro em 8 de junho para ouvir advogados e representantes de entidades de direitos humanos. Segundo a OAB, houve o “reconhecimento de que a questão da segurança pública é atravessada pela questão racial e, portanto, há um elemento de racismo nas operações policiais”.
No documento enviado ao governo do Rio de Janeiro, a OAB afirmou que o estado deve “enfrentar o perfilamento racial em detenções e em outras manifestações de uso da força, como as mortes decorrentes de operações policiais”. Para isso, pediu que o governo reconheça “o acentuado impacto que as operações e a letalidade policial têm junto às pessoas negras e residentes de favelas e periferias”, e observe as determinações do STJ na decisão que endureceu as regras para abordagens policiais sob a justificativa da redução do preconceito.
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A OAB sugeriu também a criação de um grupo de monitoramento das atividades policiais que integre “especialistas da sociedade civil, em posição de paridade com representações governamentais”, e que essas pessoas tenham permissão para acessar os dados de vídeo e áudio coletados nas câmeras operacionais acopladas nas fardas dos agentes.
Algumas medidas sugeridas pela OAB:
- Remanejamento de todo policial envolvido em episódio de letalidade até a conclusão das investigações do caso;
- Criação de “indicadores de eficiência” para avaliar efetividade dos meios empregados pela polícia;
- Reparação às vítimas de violência policial e familiares, incluindo apoio financeiro, assistência médica e psicológica.
Propostas estão descoladas da realidade, dizem deputados
Em sessão plenária na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em 29 de junho, os deputados estaduais Alexandre Freitas (Podemos) e Marcio Gualberto (PSL) criticaram as sugestões enviadas pelos órgãos públicos e pela OAB. Ao anunciar que também encaminhariam sugestões ao governo do estado, os parlamentares argumentaram que as propostas estão desconectadas da realidade e que aumentar restrições às operações levaria a um domínio ainda maior do crime organizado nas comunidades.
Freitas enviou seu conjunto de propostas ao Executivo estadual em 4 de julho. No documento, ele apontou a necessidade de diferenciar as mortes ocorridas em ações policiais entre três tipos: a letalidade reativa, que é ocasionada pela reação legítima dos agentes frente à resistência armada de criminosos; a letalidade colateral (ou acidental), que consiste na morte não desejada de policiais, criminosos e cidadãos inocentes; e a letalidade intencional, que corresponde a extermínio, chacina ou assassinato intencional de pessoas.
O parlamentar afirmou que é importante fazer tal diferenciação ao considerar mudanças nas políticas relacionadas às operações policiais. “Medidas eficazes para a redução de um tipo de letalidade não necessariamente impactam nas demais”, argumentou.
No âmbito da letalidade intencional, o deputado sugeriu a suspensão imediata das atividades operacionais - com retenção da arma de fogo de policiais alvo de sindicância, inquéritos ou processo judicial relacionados a mortes intencionais ilegais ou relação com organizações criminosas; fortalecimento das corregedorias; e avaliação toxicológica, psiquiátrica e psicológica regular e periódica como condição para a atuação em atividades operacionais e contato com o público.
Freitas citou ainda medidas para a redução da letalidade reativa e acidental, que passam pela instalação de um Centro Integrado de Operações de Fronteira na Baía de Guanabara – local usado como rota do tráfico de armas e drogas – e a expansão do programa Cidade Integrada, lançado pelo governo do estado no início do ano. O programa pretende ser uma versão aperfeiçoada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) ao aliar segurança pública e intervenções sociais nas comunidades para conter o avanço do narcotráfico.
A reportagem tentou contato com o deputado Marcio Gualberto, que é policial civil, para solicitar suas propostas encaminhadas ao governo, mas o parlamentar não retornou até o fechamento desta reportagem.
No dia seguinte à publicação das sugestões da Defensoria Pública, o deputado fez publicações em suas redes sociais nas quais afirmou que as recomendações tanto da Defensoria quanto da OAB “têm a finalidade de asfixiar as forças policiais, matá-las a partir de dentro e reestruturá-las por completo a partir de uma visão marxista”.
Procurados, o Ministério Público do Rio de Janeiro e a OAB afirmaram que não irão se manifestar sobre as críticas às suas propostas. A Defensoria Público do Rio de Janeiro não deu retorno à reportagem até a publicação da matéria.
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