Viagem a Paris, carta de despedida aos amigos, jantar em restaurante renomado e uma “morte serena e tranquila” foram alguns dos elementos usados na cobertura midiática do suicídio assistido de Antonio Cicero para romantizar o acontecimento. O escritor, filósofo e membro da Academia de Letras do Brasil viajou à Suíça para realizar o procedimento no último dia 23. O país é um dos poucos que permite que estrangeiros tenham acesso à prática.
A partir do ocorrido, grandes veículos exploraram a decisão de Antonio Cicero na tentativa de fomentar um debate sobre a eutanásia. Alguns jornalistas enfatizaram a posição social e intelectual do escritor na tentativa de relacionar sua decisão a uma escolha racional e “evoluída”.
Os jornais também deram ênfase à viagem do escritor com o marido à Paris, antes de ida à Suíça, incluindo um jantar no restaurante La Coupole na capital francesa, destacando que o local era ponto de encontro de intelectuais franceses. “Acompanhado do marido, Marcelo Pies, o imortal chegou calmamente para jantar e aparentava estar feliz”, destacou uma coluna que trazia detalhes do passeio.
Além disso, as matérias jornalísticas repercutiram algumas declarações do companheiro de Cicero, que descreveu a morte como tranquila e serena, e confidenciando que o escritor morreu segurando sua mão. Textos como esses, no entanto, omitem as burocracias e situações difíceis que envolvem o processo em uma clínica de suicídio assistido na Suíça. Como por exemplo, o fato de que os parentes precisam receber as autoridades policiais e prestar depoimentos após a morte, em um momento de bastante fragilidade.
Expressões usadas em cobertura distorcem o debate, afirma filósofo
Diversos jornais publicaram a carta de despedida que Antonio Cicero escreveu aos amigos próximos, na qual relatava dificuldades enfrentadas por conta do Alzheimer. A Organização Mundial da Saúde (OMS) é taxativa ao afirmar que cartas de despedida e suicídio não devem ser divulgadas. Em um manual da OMS para orientar a mídia sobre o tratamento de temas relacionados ao suicídio, a organização enfatiza a importância de “não glorificar” a prática.
“Com relação ao caso do Antonio Cicero, evidentemente estamos tratando de um assunto extremamente doloroso. É uma pena que alguns veículos da imprensa estejam usando isso para fazer propaganda ideológica”, afirma Henrique Elfes, filósofo e especialista em antropologia.
Elfes explica como o uso de expressões recorrentes em matérias e artigos, como “autonomia no fim da vida”, ou a ideia de considerar a prática de eutanásia como um “tabu”, faz com que o texto ultrapasse o caráter informativo. “Tabu significa uma proibição pseudorreligiosa ou religiosa, que não tem nenhum fundamento na realidade. Um tabu impediria as pessoas de ter uma discussão iluminada, inteligente, acerca desse tema. Só o uso da palavra tabu já é manipulativo, por exemplo”, esclarece.
Dessa forma, o texto passa a assumir um tom persuasivo, por meio da retórica. A escolha das palavras permite ao autor provocar no leitor sentimentos específicos e interpretações enviesadas, orientando a percepção sobre o tema de acordo com uma agenda pré-estabelecida.
Pedido por eutanásia pode ser apenas pedido de ajuda e afeto, diz geriatra
João Batista Lima Filho, médico geriatra e especialista em bioética, destaca que, nos países onde a eutanásia é legalizada, a prática mais procurada devido à falta de valores morais, ao medo do sofrimento ou à incapacidade dos familiares de oferecer suporte. “Porém se o paciente é assistido pelo médico e equipe de saúde com a participação da família, todos terão força para enfrentar a situação até o fim. Os cuidados paliativos favorecem uma ‘morte serena e tranquila’”, ressalta Lima Filho.
Para Henrique Elfes, a ideologia contemporânea trata a dor como um mal insuportável e que deve ser evitada a qualquer custo, ideia que ele atribui à influência da ideologia pós-iluminista. “Essa visão de que o sofrimento é um mal que tem que ser minimizado, ou extirpado da vida humana é o dogma que eles querem difundir, porque é uma afirmação baseada única e exclusivamente no fato de que o sofrimento é repugnante para nós”, acrescenta.
João Batista Lima Filho explica que nem sempre o desejo da morte é autêntico e que, frequentemente, pode ser apenas uma expressão de angústia ou um pedido de ajuda e afeto. “Há um grande risco de se equivocar sobre o sentido do pedido da morte por parte do doente. Este pode ser somente um pedido de atenção ou analgesia mais eficaz”, considera.
O especialista acredita que a discussão sobre a morte do intelectual não deve ter um impacto relevante a fim de atrapalhar possíveis avanços em políticas públicas para cuidados paliativos. O médico destacou a Política Nacional de Cuidados, apresentada em julho deste ano e que aguarda apreciação no Congresso Nacional.
“A capacidade de quem assiste uma pessoa atingida por doença crônica ou na fase terminal da vida deve ser aquela de “saber estar” com quem sofre a angústia do morrer, “consolar”, ou seja, ser copresença que abre à esperança”, finaliza.
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