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Os líderes Floriano da Silva e Dorvalino Pinto, da Associação São Domingos, na Rua da Trindade, mantêm ações permanentes com a comunidade | Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo
Os líderes Floriano da Silva e Dorvalino Pinto, da Associação São Domingos, na Rua da Trindade, mantêm ações permanentes com a comunidade| Foto: Rodolfo Bührer/Gazeta do Povo

O PRINCÍPIO

O criminalista David Weisburd diz que um pequeno número de ruas concentra um grande número de crimes. O criminoso, a exemplo de qualquer cidadão, tende a ficar onde lhe for mais cômodo. Para o pesquisador, somente a cumplicidade entre policiais e a população pode alterar esse quadro.

A REPORTAGEM

A Gazeta cruzou o número de homicídios em Curitiba e região em 2008 e 2009. Foram 3.050 mortes em mil ruas – 557 da capital e 443 na RMC – 20 vias concentram o grosso das ocorrências. O arruamento não é 100% seguro: os registros do IML às vezes substituem o endereço do crime pelo bairro ou hospital do óbito.

A HIPÓTESE

As ruas mais violentas de Curitiba e região metropolitana assim o são porque apresentam problemas de infraestrutura urbana, baixa influência das redes sociais (escolas, igrejas e associações de bairro), ausência de policiamento e de políticas de habitação.

CuritibaAv. Juscelino Kubitscheck e Rua Cid Campelo (CIC); Rua Nicola Pellanda (Pinheirinho/Umbará); Rua Anne Frank (Boqueirão); ruas Maurício Fruet e da Trindade (Cajuru).

AraucáriaRua Lótus, Rua das Dálias e Rua das Palmas (bairro Capela Velha; Rua Beija-Flor e Rua Saracura (Jd. Califórnia).

Almirante Tamandaré Rua Alberto Krause (Vila Tanguá); Rua Guilherme Graboski (Jd. Vitória).

ColomboRua São Gabriel (bairro São Gabriel); Rua das Flores (Jd. Monte Castelo); Rua Padre Domingos Marini e Rua Rafael Francisco Greca (bairro Itajacuru); Rua Carlos Fontoura Falavinha (Jd. Ana Terra).

PiraquaraRua Betonex (bairro Guarituba).

***Ruas tiveram entre 3 e 8 homicídios de 2008 a 2009.Não foram contabilizados homicídios duplos, triplos e chacinas.

TRIBUNA

A palavra de quem estuda a geografia da criminalidade.

- Coronel Roberson Bondaruck, autor de A Prevenção do Crime Através do Desenho Urbano. Em sua opinião, a concentração de delitos em determinadas ruas se dá pela presença de matagais, por exemplo; absorção cultural de pequenos delitos; demarcação de território por traficantes e ausência do poder público. O que pode ser feito? Programas de regularização e integração urbana de áreas irregulares; projetos de iluminação pública e paisagismo; melhoria de áreas degradadas.

- Jaílson de Souza, coordenador geral do Observatório de Favelas. No Rio de Janeiro, 50% dos crimes ocorrem em um espaço circunscrito a 10% da cidade. Para ele, as razões podem ser da falta de efetivo policial a proximi­dade de espaço controla­dos por gru­pos de criminosos. O que pode ser feito? Política de segurança pública não ficar somente nas mãos da polícia, mas envolver – como ocor­­­­­re na saúde e na educação – outras instituições sociais e os cidadãos.

  • João Vissoto, comerciante em Colombo: crime escoa pela esquina
  • Linea Joch entrega cartas na periferia de Araucária e ouve histórias do tráfico
  • Veja os critérios avaliados pela reportagem na visita as 20 ruas com o maior número de homicídios

"Aqui tem esgoto sim, só não se sabe onde vai dar (risos). Já pedi tanto à prefeitura pela minha rua que se me derem o número de Deus, li­­­go para Ele agora..." A fala é debochada, à moda vileira, dita na frente de um barzinho pé-sujo da Vila Camargo, no Cajuru, numa tarde sem ter mais o que fazer. Mas o nome do autor não pode ser revelado nem sob tortura. É que quando "R" se mete a matraquear sobre fos­­­sas e ônibus atrasado acaba falando "o que não deve". Pois dito e feito. Ele conta que a mesma ruazinha da amargura em que vive também é uma "rua da morte", como diz o povo sobre as redondezas onde as espingardas cospem fogo. De tantos assassinatos testemunhados, "R" já chegou a dizer à família um sonoro "deixem para lá". Que esquecesse lá fora o corpo estendido no chão. Era isso ou o telefone de Deus.Há de fato uma relação imediata entre urbanização baixa e criminalidade alta. A depender do caso, um bom poste de luz faz mais por uma comunidade do que um posto policial. Resta saber por que o planejamento urbano não prioriza as ruas violentas, deixando todos felizes para sempre. É o que esta reportagem tenta responder. Para tanto, foram ouvidos especialistas e populares. E se bateu pernas nos endereços mais "perigosos" de Curitiba e região metropolitana. O que se pode afirmar é que a pavimentação e esgoto são um santo remédio, mas que não fazem milagre, principalmente quando chegam tarde demais. Para que se tenha uma ideia dos efeitos da "urbanização retardada", das 20 ruas sanguinárias mapeadas pela reportagem – 19 contam com iluminação. No geral, a infraestrutura das "ruas da morte" oscila de média para boa e de média para ruim. Equivaleria a um "5" no boletim – o que deve ser a nota de pelo menos metade das 8,3 mil ruas da capital paranaense.A explicação para esse fenômeno é tola como uma receita de mingau: mesmo quando a urbanização tira o criminoso do esconderijo, ele mantém sua caixa de correio no lugar. Elementar: é ali que está sua rede – uma rede sustentada com a ajuda de moradores, igrejas, escolas, associações e dotada de uma logística à prova de bala. Em miúdos, se a urbanização não afugenta a violência deve ser porque a violência é tão acomodada quando o seu João da padaria. A tese de que o crime não muda de endereço é defendida pelo pesquisador David Weisburd, da Uni­ver­­sidade de Jerusalém, ganhador do Prêmio Estocolmo 2010 de criminologia. Com base em taxas de ho­­­mi­­cídio em cidades americanas co­­­mo Jersey City e Minneapolis, Weis­­­burd comprovou que 50% dos crimes ocorrem em apenas 4% da malha urbana. Fica fácil para a polícia?

Ação entre amigos

A Rua das Flores, em Colombo, e a Avenida Maurício Fruet, no Ca­­juru, são o avesso do avesso. Uma é baldia como um campo de refugiados, a outra arrojada. Mas se igualam no pior dos quesitos: há dois anos, ambas foram palco de três crimes violentos. Seria uma tolice afirmar que o calçamento não melhorou em nada a Maurício Fruet ou que não faria bem nenhum pela pobre da Flores. A questão é que o urbanismo é um companheiro caprichoso: funciona se estiver acompanhado de um novo pacto social.

O diretor-presidente da Companhia de Habitação Popular de Curitiba, Mounir Chaowiche, entende desse riscado. De 2007 para cá, a Cohab promoveu uma reviravolta numa das zonas mais problemáticas da capital, a histórica favela do Parolin. Casebres beira-rio vieram abaixo, sobradinhos anunciaram o mundo novo. Mas homens e máquinas terão trabalhado em vão se a intervenção não mexer com a cultura da violência instalada entre os parolinenses.

"É um processo moroso. Não é só a casa própria que resgata uma comunidade", pondera Chaowi­che. Ele se refere ao catatau de da­­dos levantados pelo órgão municipal, pelos quais é possível saber quantos dividem o mesmo te­­to e até que série estudou o morador da região. Juntas, as informações re­­velam que a vila transformada em sinônimo de violência é também sinônimo de evasão escolar, de­­semprego e informalidade.

É justamente nessa encruzilhada que os governos se esbarram. Para o secretário de estado de Se­­gurança Pública do Paraná, Luiz Fernando Delazari, a violência é provocada por tantas variantes que deixou de ser um assunto da polícia, como muitos insistem. En­­fático, o secretário traça um quadro nefasto sobre o abandono juvenil e urbanístico a que estão sujeitas as "ruas violentas", onde, se­­gundo ele, concentra-se o grosso dos 1.685 homicídios verificados em Curitiba e região metropolitana ano passado.

Delazari – criticado por não di­­­vulgar os dados do Mapa do Crime de 2009, documento que contabiliza a violência no estado – aproveita a deixa. "Diversos setores da sociedade podem gerar dados sobre violência e não apenas nós." Seu ponto de vista é o de que, embora reclame da criminalidade, a sociedade organizada tem preferido ver a vida passar na janela a se engajar no assunto. Faz sentido. A Universidade Federal do Para­ná mantém um núcleo de estudos de criminalidade. E as escolas fundamentais e médias raramente se mostram pró-ativas. O mesmo se diga das unidades de saúde e hospitais, que se deparam com o crime, mas não fa­­­zem dele matéria-prima para suas políticas.

Em termos

Do outro lado desse ringue, o delegado licenciado da Polícia Federal e ex-secretário Anti­dro­­gas da prefeitura de Curiti­ba, Fernando Francischini, quase sai no braço com Delaza­ri.

O londrinense Francischi­ni se mudou para a capital em 2008, depois de se tornar inter­nacionalmente conhecido por capturar o narcotraficante Juan Carlos Ramirez Abadía. Chegou aqui com tarefa tão difícil quanto: explicar por que a civilizada Curitiba – dona de invejáveis índices de educação e de saúde – não con­­­­­­segue passar a perna na criminalidade, em cujo ranking ocupa um desastroso sétimo lugar entre as capitais.

"Uma coisa não bate com a outra", protesta. "Todos os ‘ólogos’ me odeiam quando digo que a culpa da criminalidade não é a pobreza, mas o tráfico – e mais precisamente o crack, droga que se nutre dos lugares escuros e abandonados", avalia, enquanto rasura em folhas a anatomia da tragédia.

Os rabiscos têm lhe valido. Nos dois anos de gestão, a verba da Secretaria Antidrogas passou de R$ 1,2 milhão para R$ 6 mi­­­lhões. E o delegado formou uma rede paralela de 5 mil informantes, cujas identidades são um segredo de confissão. Eles abastecem o que ele chama de Rede Sa­­lo­­­mão, um banco de dados cujos resultados podem ser visualizados numa gigantesca tevê de plasma, instalada no escritório do órgão, na Rua da Glória.

Como num filme de terror virtual, vê-se ali a imagem da rua em que se passa para ir à padaria e à escola. Ao lado, um sinalizador virtual mostra a boca de fumo mais próxima. Francischini explica o que se esconde por detrás de cada balãozinho vermelho: um mercado de empregos invejável, mantido por um modelo quase tão modesto quanto o das Capelinhas de Nossa Senhora, mas com a complexidade de uma multinacional.

"Nesses endereços estão os melhores vendedores do mundo: os próprios moradores", declara. Eles são jovens, dependentes químicos e passam o dia na esquina. São "vapores". Se devem ao tráfico, são cobrados com rigor. "Repare: depois de uma morte por dívida de droga, a violência explode. Meni­­nas se prostituem para serem perdoadas. Devedores se perseguem. As ruas viram um pandemônio", ilustra. Nem Delazari nem Francis­­chini podem segurar sozinhos essa onda.

Era a isso que "R" se referia no bar da Vila Camargo.

Bem lhe avisaram que ele fala demais.

Na dúvida, ninguém ultrapassa

Entre 2008 e 2009, mil ruas de Curitiba e região metropolitana se converteram em palco de mais de 3 mil homicídios. O dado, contudo, é falho. Na maior parte do casos, a documentação oficial não indica o endereço do crime, relativizando uma informação fundamental para a gestão pública. Do contrário, seria possível saber da real situação da Rua Nicola Pellanda, no Umbará, palco de oito homicídios notificados nos dois últimos anos. Tudo indica que o índice é muito maior. Mas na dúvida, não se ultrapassa.

Para essa reportagem, como remédio, fez-se uma amostragem das 20 ruas com mais indicações nos boletins do IML. Em seguida, percorreu-se cada endereço do crime. Nem sempre os mapas ajudam: a violência mora longe e não se dá a conhecer tão fácil.

A profissional dos Correios Linea Joch, 26 anos, bem o sabe. Há cinco anos ela entrega correspondências em 50 endereços de 11 ruas dos jardins Tupy e Califórnia, na rica Araucária. As ruas – percorridas de moto – são de asfalto, antipó e chão batido. Tudo parecia normal. Até que Linea foi se inteirando de histórias ouvidas entre uma latida de cachorro e outra. Envolvem jovens, drogas e os humores do tráfico.

Ao passar os olhos na lista de cinco ruas violentas da região – Lótus, Dálias, Palmas, Beija-Flor e Saracura – ela dá o veredito. São movimentadas, têm bom comércio e... "José", 43 anos, um morador do Tupy que não quis se identificar, vai mais longe e conta nos dedos. "Desde o começo do ano já foram cinco homicídios na redondeza. Tudo briga..."

"José" se mudou para Araucária há 20 anos, em busca de uma rua para chamar de sua. Pensava ter encontrado o que procurava: da janela de onde mora pode ver o mato verde. Agora, enxerga também uma boca de fumo, cuja atividade é conhecida das autoridades, volta e meia em visita à área, não propriamente para dar ordens de prisão.

O comerciante João Dair Vissoto, 56, dono de uma panificadora na Avenida São Gabriel, em Colombo, não conhece "José", mas concorda com ele: a segurança pública é cheia de pesos e medidas. O estabelecimento de João foi assaltado 11 vezes em menos de um ano. "Somos cidadãos, pagamos impostos e ajudamos no crescimento da economia. O que ganhamos com isso?", diz o homem que teve R$ 5 mil levados de uma única vez.

Dia desses, ele chegou a colocar uma faixa de repúdio na frente da padaria, sem sucesso. A freguesia passou a evitar o local. "Não aguento mais. O país está enfrentando uma guerra civil e ninguém faz nada", desabafa, enquanto aponta o cruzamento que lhe serve de tormenta: o local garante acesso fácil, inclusive para jovens motoqueiros que assaltam e se mandam em direção aos jardins Santa Helena, São Gabriel, São Sebastião, Ana Terra e até para o Centro da cidade.

A Rua Carlos Fontoura Fala­­vinha, no Ana Terra, Colombo, pade­­­ce de mesmo mal que a São Gabriel. Tem antipó e comércio dos dois lados. Mas logo a paisagem se decompõe. As cores do Caic convivem com barracos mal construídos de uma ocupação. Ali acaba a rua "e começa o inferno", como lembra um morador.

O cenário de abandono repentino se repete em boa parte das "20 ruas". Mas não é a única particularidade. Nos lugares onde o crime tem endereço, quase ninguém tem nome. Na Avenida Betonex, a principal do bairro Guarituba – uma ocupação de 40 mil moradores, em Piraquara – nenhum morador é identificado. "Tá vendo aquela casa azul? Pois a dona foi morta há duas semanas...", diz um bebedor da redondeza, sobre uma alcaguete calada a balas. Apenas em 2008, a Betonex, em silêncio, assistiu a cinco homicídios. Mas o povo dali diz que é balela. Não passa mês sem notícia ruim. "Isso aqui é uma surpresa", bagunça a turma do bar.

De fato. A rua parece cenário do núcleo pobre de novela. Tem asfalto, o Varejão do Alemão, o Wando’s e duas escolas. A ação da prefeitura com os jovens do local é modelar. Os índices de violência, contudo, resistem debaixo do silêncio e da conivência despistada de medo.

Nem sempre é assim. A reportagem encontrou redenção num dos redutos de violência mais conhecidos de Curitiba – a Vila Trindade, no Cajuru. Está lá o asfalto, o comércio e o silêncio. Mas também uma rede social que não se faz de rogada.

Os líderes comunitários Dor­­va­­­lino Pinto, 54, e Floriano da Silva, 47, já foram às ruas para pedir paz. "Fizemos de tudo. Mesmo com o poder público não se impressionando mais com nossa situação", diz Dorvalino, no barracão atulhado de roupas e de mantimentos para o sopão diário. "Mas agora passamos 30 dias sem mortes. Já foram 30 ho­­ras." Balanço positivo. Na saideira da Rua da Trindade, deu até para ouvir uma voz anônima clamando no deserto. "Hei, não sabemos quem faz tráfico. Mas eles sabem quem somos. Enten­deu?" (AP e JCF)

COM A PALAVRA

Fontes desta reportagemFernando Francischini – ex-delegado da Polícia Federal que implantou a Secretaria Antidrogas na prefeitura de Curitiba; Luiz Fernando Delazari, secretário de Estado de Segurança Pública; Mounir Chauwiche, secretário municipal de Habitação; coronel Roberson Bondaruck, diretor da Escola Guatupê de formação de oficiais da Polícia Militar do Paraná e referência em geografia do crime; Jaílson de Souza, sociólogo, criador do Observatório das Favelas, do Rio de Janeiro; Walter César, sociólogo do Conselho de Segurança da CIC.

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