"Como um perfeito ator, Reginaldo manteve seus mesmos comportamentos correntios ao chegar em casa. Sorriu em frente à porta e retirou seus chinelos sujos antes de pedir um balde com água. Ao relatar sobre seu casual encontro com Maria, Júlia sorriu empolgada, prometendo a si mesma uma visita à casa de sua antiga amiga. Voltar a conversar com Maria seria para Júlia como um estimulante para uma vida cheia de frustrações e desgostos, uma terapia para dias insípidos que esvaía seu amor pela vida. Como previsto por Reginaldo, no domingo seguinte, ele, Manuelle e Jasom compartilharam o barraco sozinhos."
Trecho de Vidas Vinculadas à Tragédia, de Hamilton Antunes.
A história do cobrador de ônibus Hamilton Antunes rendeu um livro e deve render outros mais. Há cinco anos, em Caxias do Sul (RS), quando foi chamado no meio do expediente para ouvir a notícia de que a irmã havia sido morta por um assaltante, ele era um leitor esforçado que escrevia esporadicamente. O trauma de perder Marines o levou a uma depressão da qual nunca se recuperou por completo.
Nessa época, começou a escrever mais. Escrever para lidar com uma situação que o incomodava muito. Usando o tempo que passou sem trabalhar, conseguiu concluir um romance em dois anos e meio. O título é Vidas Vinculadas à Tragédia, recém-lançado pela editora curitibana Artes & Textos e parte de um segmento de obras amadoras, feitas com coragem, mas à margem do mercado livreiro. Por serem independentes, elas escapam do crivo de editoras e funcionam mais como a materialização dos sonhos de quem quer contar histórias, não importa como.
Inspiração
O livro é uma ficção sobre ganância no mundo corporativo, envolvendo a disputa por poder de personagens com nomes estrangeiros, como Clark Meisinger e Edward Radmim. Partes da narrativa foram inspiradas na tragédia pessoal do autor.
Há inclusive um trecho que aparece nas páginas 59 e 60 tal qual Antunes o escreveu três dias depois da morte da irmã: "Quando se olha ao redor e consegue-se ver apenas lágrimas, quando dá impressão que o próprio espírito abandonou seu corpo, nesse momento você se torna nada mais que um miserável cadáver ambulante".
O crime ganhou contornos de romance policial porque, 28 dias depois, a polícia descobriu que o marido de Marines foi o autor dos quatro disparos que a mataram. Ele tentou simular um assalto e matou a mulher com quem tem uma filha para ficar com o dinheiro do seguro, algo em torno de R$ 20 mil. Foi condenado, passou quatro anos na cadeia e hoje é um homem livre.
Antunes se sentiu culpado porque apoiava a relação dos dois. O episódio o tornou cético, mas o levou a narrar uma história difícil em que pessoas boas podem sofrer e as más, se dar bem.
"Se você se simpatiza pelo mocinho (sic), você pode decepcionar-se ao longo da leitura. Se você odeia o vilão, pode, certamente, sentir asco pelo escritor, pois sabe-se ele (sic) que no mundo em que vivemos o bem na maioria dos casos sai perdendo no prélio contra o mal", avisa o autor num texto de apresentação. Essa é sua explicação por escrever "de forma tão nefasta e pessimista".
Viagem
Com o manuscrito finalizado, Antunes deixou Caxias do Sul para vir a Curitiba em 2008. R$ 500 era tudo o que tinha. Seu objetivo era publicar o romance em uma cidade grande e escolheu a capital paranaense por ser seu estado natal.
Enviou o livro para as editoras Record e Sextante, mas até hoje não teve resposta. É neste ponto que a determinação de Hamilton Antunes o destaca da multidão.
Enquanto muitos sonham em publicar um livro e esperam ser descobertos lamentando quando isso não acontece , Antunes decidiu bancar sua estreia literária. Trabalhou em vários empregos. Passou por duas metalúrgicas, por uma indústria química e hoje é cobrador da Viação Redentor (sem dúvida, um nome perfeito dentro da sua história).
Com as economias e mais o empréstimo bancário que vai passar um tempo pagando, reuniu R$ 18 mil para pagar as despesas de gráfica e editoração. Sozinho, bancou uma tiragem de mil exemplares de um romance de quase 500 páginas, números grandes para um escritor amador e editor de si mesmo.
Além da coragem de investir na própria carreira, ele parece ter tino comercial: já vendeu cerca de 600 livros apenas para amigos, conhecidos e pela distribuição da Livrarias Curitiba. Se as vendas continuarem, quer usar o dinheiro para pagar a segunda edição de Vidas Vinculadas à Tragédia e publicar seu próximo livro, Lembrança de uma Obsessão, já finalizado.
Timidez
A reportagem encontrou com Antunes num café do Shopping Estação, onde ele costuma passear com a mulher, Vani, grávida de Yasmim, primeira filha do casal.
Nascido em Ampére (PR), Antunes completou 26 anos no último dia 6. Tímido, estava visivelmente nervoso para a entrevista a água não vencia a boca seca. Com alguns minutos, depois de encarar a câmera do fotógrafo e começar a falar de si, conseguiu relaxar um pouco. Embora diga que não espera ficar rico com o que escreve mas sonha em trabalhar apenas com isso , seus escritores favoritos dão uma ideia de como enxerga a literatura: ele é um leitor do americano Dan Brown (O Código Da Vinci) que adora o russo Dostoiévski (Crime e Castigo).
O paranaense acredita que a tristeza é um bom estado de espírito para escrever. Ela dá sinceridade ao texto. A dor o moveu no início e Antunes não consegue escrever de outro modo. Sua meta principal é ser lido, é conseguir emocionar os outros de alguma forma.
A maior satisfação que sente é quando alguém o aborda para dizer que gostou do livro, ou que a história o marcou, o fez pensar, ou mesmo serviu para aprender palavras novas. Uma nota no início de Vidas Vinculadas à Tragédia admite que "alguns vocábulos foram empregados com significados errôneos", explicando que o autor "usa uma acepção não existente, mas comumente análoga ao significado real da palavra".
Prolixo e doente por adjetivos, Antunes vê a literatura como uma saída de emergência de um mundo absurdo.
Serviço: Vidas Vinculadas à Tragédia, de Hamilton Antunes. Artes & Textos, 484 págs., R$ 34,90 (à venda somente nas Livrarias Curitiba).
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