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Em 2019 e 2020, o Brasil estabeleceu algumas alianças internacionais no campo dos direitos humanos em parceria com os Estados Unidos, como a Aliança Internacional pela Liberdade Religiosa e o Consenso de Genebra. Em caso de vitória de Joe Biden, do partido democrata, nas eleições norte-americanas que ocorrem nesta terça-feira (3), a tendência é que esses acordos continuem existindo, mas tenham muito menos impacto no cenário internacional.
Nos Estados Unidos, as grandes figuras responsáveis por articular os acordos recentes são bastante ligadas à administração de Donald Trump. O secretário de Estado Mike Pompeo, um cristão presbiteriano, foi quem tomou as rédeas tanto da Aliança pela Liberdade Religiosa – fundada na ideia de que é preciso fazer mais, internacionalmente, para proteger grupos religiosos de perseguição – e do Consenso de Genebra – um acordo que prega a defesa da vida e um cuidado com a saúde das mulheres que não envolva a promoção do aborto.
Se Biden vencer, uma das favoritas para substituir Pompeo no Departamento de Estado é Susan Rice, ex-embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas. Recentemente, ela deixou um sinal claro de que não daria continuidade ao tipo de defesa de valores que se vê na gestão atual. “Mike Pompeo tem sido um secretário de Estado abertamente religioso, o que em si é problemático, porque ele deve representar toda a América, todas as nossas religiões", disse ela à rede MSNBC em uma entrevista.
Ela provavelmente nomearia autoridades com cosmovisões muito diferentes das de Samuel Brownback, católico que exerce o cargo de embaixador pela Liberdade Religiosa Internacional no Departamento de Estado, e Alex Azar, cristão ortodoxo que atua como secretário de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.
O governo brasileiro também perderia, nessas alianças, o importante apoio de Valerie Huber, representante especial para a Saúde Global da Mulher dos EUA. Ela faz parte de uma lista negra da Planned Parenthood, maior entidade promotora de abortos no mundo. Trabalhou durante anos na Ascend, organização que atua para evitar a sexualização precoce de jovens e que inspira um programa do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de Damares Alves, no Brasil.
Apesar de tudo isso, é possível que os objetivos dos acordos firmados nos últimos anos sejam preservados mesmo com uma vitória democrata. Para o embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster, a ideia de que os democratas sejam completamente avessos a pautas ligadas a valores religiosos é equivocada. “Tradicionalmente, essa agenda pró-vida era uma agenda bipartidária aqui nos Estados Unidos. Ela não tinha coloração política, estava acima disso. Em anos mais recentes se reduziu a bancada democrata que apoia as iniciativas pró-vida, mas ainda há, não desapareceu”, diz.
Com Biden, Brasil precisaria assumir papel de liderança na agenda de costumes conservadora
Em uma eventual vitória de Biden, o governo brasileiro seria obrigado a assumir papel de liderança para promover os objetivos dos acordos firmados. Outros países que tiveram protagonismo em uma agenda conservadora internacional nos últimos anos, como Hungria e Polônia, não têm o tamanho e a influência do Brasil no cenário internacional.
Os eventos que celebram esses acordos provavelmente deixariam de contar com personalidades do Departamento de Estado norte-americano e, por isso, não teriam o mesmo alcance midiático que no atual contexto. O trabalho de bastidores, mais do que a comunicação na mídia, passaria a ser crucial para promover internacionalmente os valores que o governo brasileiro sustenta.
A liderança global desse movimento recairia sobre a secretaria da Família do ministério de Damares, comandada por Angela Gandra, sobre a delegação brasileira em Genebra – que sedia o Conselho de Direitos Humanos da ONU – e sobre o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
A ênfase em pautas de costumes tem sido uma característica dos discursos de Araújo, que não professa publicamente nenhuma religião, mas é cada vez mais afeito a valores cristãos. Em caso de derrota de Trump e do fim do mandato de Pompeo como secretário de Estado, o chanceler brasileiro poderia passar a ser o principal porta-voz das bandeiras da liberdade religiosa e da defesa da vida entre as autoridades políticas dos países membros da ONU.