Lei brasileira autoriza condenados por estupro a passarem para regime menos rigoroso após 40% de cumprimento da pena| Foto: Unsplash
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Apesar de o crime pelo qual se tornou réu ser considerado hediondo pela legislação brasileira, o médico anestesista preso em flagrante por estuprar uma paciente sedada para uma cesariana, em um hospital na Baixada Fluminense (RJ), deve passar pouco tempo preso em regime fechado - caso venha a ser condenado futuramente. Isso porque o sistema de progressão de regime prisional no Brasil permite que em casos de crime hediondo – estupro, latrocínio, tortura, terrorismo, entre outros – o condenado passe para um regime menos rigoroso após o cumprimento de apenas 40% da pena caso seja réu primário.

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Se for condenado à pena mínima pelo crime de estupro de vulnerável, que é de oito anos, o anestesista passaria ao regime semiaberto em apenas três anos e dois meses. No caso de ser condenado à pena máxima, de 15 anos, o cumprimento de prisão em regime fechado estaria limitado a seis anos*. A partir daí, em caso de falta de vagas nos regimes menos rigorosos – o que não é raro no país –, ele poderia até mesmo cumprir o restante da pena em sua residência mediante uso de tornozeleira eletrônica até que surja uma vaga no semiaberto ou aberto.

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* O raciocínio em questão parte do entendimento de que o médico tornou-se réu pelo abuso de apenas uma vítima. Há, no entanto, outros cinco possíveis caso de estupro em investigação pela Polícia Civil. Se as investigações concluírem que houve mais vítimas, naturalmente a pena seria majorada.

O caso ilustra o problema crônico da impunidade no país. Mesmo em casos de crimes graves, as penas previstas no Código Penal quase nunca são cumpridas de forma integral em regime fechado devido aos benefícios de progressão e remição de pena. Além disso, como explicam fontes consultadas pela Gazeta do Povo, existe no país uma “cultura da pena mínima”, que faz com que em raríssimas situações haja condenação com as penas máximas previstas na legislação.

“A pena inicial, usada como referência para a fixação da pena final, sempre se aproxima do mínimo. Não começa, como seria lógico pensar, da média entre a máxima e a mínima, a partir daí subindo ou descendo a quantidade de pena conforme as nuances do caso concreto”, explica o procurador de justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul Fábio Costa Pereira.

“Pacote de benefícios” garante progressão de regime, remição de pena e até saidinhas

O artigo 112 da Lei de Execução Penal é o que orienta a progressão de regimes prisionais no Brasil. O dispositivo sofreu alterações no âmbito do pacote anticrime, instituído pela Lei 13.964/2019, que entrou em vigor em janeiro de 2020. Antes das mudanças, todos os condenados – com exceção daqueles que praticaram crimes hediondos – podiam progredir para um regime menos rigoroso a partir do cumprimento de 16% da pena, ou seja, um sexto do total.

As novas regras estabeleceram que apenas os presos condenados por crime comum, sem emprego de violência ou grave ameaça, têm direito a essa progressão mais breve. Há um escalonamento de faixas percentuais do cumprimento da pena para a progressão de regime de acordo com a gravidade dos crimes e o histórico dos presos. Atualmente, o máximo que a lei permite que um preso fique em regime fechado é 70% do cumprimento da pena, e isso só ocorre se a pessoa tiver cometido mais de uma vez um crime hediondo ou equiparável ao hediondo e isso desde que tenha resultado em morte.

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“No caso em questão, do anestesista, se o juiz quiser "pesar a mão", provavelmente irá condená-lo a uns 12 anos. E digo "pesar a mão" porque o caso teve grande repercussão. Como se trata de um crime hediondo, mas que não resultou em morte, ele vai progredir com 40% de cumprimento da pena. Pensando nessa pena mais alta e pouco provável, ele ficaria menos de cinco anos e já passaria para o semiaberto”, explica Ronaldo Lara Resende, promotor de justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul e professor de Direito Penal e Processo Penal.

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Há ainda outros mecanismos previstos na Lei de Execução Penal que poderiam abreviar o tempo de prisão do médico que se tornou réu por estupro de vulnerável, caso ele seja condenado. A lei autoriza àqueles que cumprem pena em regime fechado ou semiaberto remir, por trabalho ou estudo, parte do tempo de execução da pena. Por trabalho reduz-se um dia da pena para cada três dias trabalhados. Já por estudo, é diminuído um dia da pena para cada 12 horas dedicadas a cursos.

No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução regulamentando a remição de pena por leitura. O órgão determinou que cada livro lido corresponde a quatro dias a menos de pena, com a redução limitada a 48 dias por ano.

Por outro lado, benefícios como indulto, graça e anistia não são estendidos a condenados por estupro e outros crimes hediondos. Se o anestesista for condenado, entretanto, ele teria direito às saídas temporárias a partir da entrada no regime semiaberto. A lei só proíbe as chamadas “saidinhas” a autores de crimes hediondos que tenham resultado em morte.

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STF anulou regime integral fechado para presos por crimes hediondos

Até fevereiro de 2006, condenados por estupro e demais crime rotulados como hediondos deveriam cumprir a pena integralmente em regime fechado, sem margem para progressão de regime. No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu, por seis votos a cinco, que essa regra era inconstitucional e passou a conceder os benefícios da progressão para autores de transgressões graves.

Os ministros derrubaram a regra anterior ao julgar pedido de Habeas Corpus (HC) de um homem condenado por atentado violento ao pudor contra três crianças. A Corte entendeu que a obrigatoriedade do regime fechado entraria em conflito com a garantia da individualização da pena, prevista no artigo 5º da Constituição Federal.

Em reação, o Congresso Nacional aprovou, em 2007, uma lei determinando que o direito ao sistema progressivo para condenados por crimes hediondos só poderia ocorrer após o cumprimento de dois quintos da pena, caso o réu fosse primário, e de três quintos caso fosse reincidente – como citado anteriormente, esses termos foram atualizados no pacote anticrime.

Além disso, os parlamentares definiram que em crimes desse tipo o cumprimento da pena teria início obrigatoriamente em regime fechado. Porém, em 2017 o STF entendeu que essa medida era inconstitucional. Na época, o ministro Edson Fachin, relator do caso, sustentou que é inviável a fixação do regime inicial fechado unicamente em razão da hediondez do crime.

Excesso de benefícios transmite mensagem de impunidade, alertam especialistas

Para as fontes ouvidas pela reportagem, os diversos benefícios concedidos a condenados criminalmente, incluindo àqueles que cometeram crimes graves, transmitem uma mensagem de impunidade. “O que é determinante é a sinalização que o Estado dá enquanto ameaça crível ao agente criminoso, no sentido de que é capaz de evitar que ele cometa o crime ou que, se ele cometer, é capaz de desvelar sua conduta e também de puni-lo adequadamente”, diz Pereira. “Essa série de benefícios no curso do cumprimento da pena denota a seguinte sinalização por parte do Estado: ‘Veja, estou te prendendo, mas pode não ser tão sério assim’”.

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Na avaliação do procurador de justiça, as penas para os crimes estabelecidas no Código Penal são adequadas, mas a extensão dos benefícios é responsável por fazer com que o tempo que o criminoso passa no presídio em regime fechado, em regra, seja menor do que a gravidade do crime cometido.

Já Resende destaca o fato de que o sistema de benefícios a condenados que existe no Brasil não encontra paralelo em outros países. “No Brasil, uma pessoa condenada por homicídio simples, sem qualificadora, tem pena mínima de seis anos. Se ela não é reincidente e não tem antecedentes, pode pegar a pena mínima por ter matado outra pessoa propositalmente. Essa pessoa começa a cumprir no semiaberto e com um sexto da pena, ou seja, um ano de cumprimento, já pode ir para o aberto. Eu não conheço nenhum país no mundo que tenha um regime tão frouxo como o nosso”, ressalta o promotor.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]