A jornalista e escritora Madeleine Lacsko, autora do livro “Cancelando o cancelamento”.| Foto: Reprodução/Instagram
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"Quando uma ideologia fica bem velhinha, vem morar no Brasil", dizia o humorista Millôr Fernandes. Comentando essa frase, a jornalista Madeleine Lacsko, colunista da Gazeta do Povo, afirma em seu novo livro: "No caso do identitarismo, é verdade. Estamos importando o que já está ficando velho e problemático nos Estados Unidos e Europa".

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Fartos da cultura woke, alguns autores americanos e europeus já publicaram livros abordando os riscos do identitarismo para a cultura democrática sob a ótica dos seus países. Cancelando o cancelamento: Como o identitarismo da militância tabajara ameaça a democracia (LVM Editora, 2023), lançado nesta semana, é a taxonomia mais completa dos perigos da lacração em sua vertente brasileira.

Madeleine aborda o tema com conhecimento de causa: em 2013, quando escrevia para um coletivo de blogueiras feministas, sofreu na pele o cancelamento após fazer críticas ao movimento antivacina capitaneado por membros veganos da esquerda caviar paulistana. "Dali em diante, havia uma barreira invisível sobre o meu nome. (…) De repente, somente veículos de direita me publicavam", relata.

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O cancelamento é o rito sacrificial do identitarismo e serve "para energizar o grupo", nas palavras de Madeleine. Trata-se de uma dinâmica "muito semelhante ao ambiente de seita ou de culto religioso alternativo". "Tem suas palavras próprias, que servem para identificar os 'de dentro' e os 'de fora', a retórica passivo-agressiva para desqualificar quem não é do grupo e a crença profunda de que se trata de um agrupamento intrinsecamente bom lutando contra a representação do mal", define a escritora.

Vários exemplares brasileiros do fenômeno do identitarismo nos últimos anos estão documentados no livro. Casos como os de Nelson Piquet, do ex-jogador de vôlei Mauricio Souza, do youtuber Monark, do assassinato de um homem negro no Carrefour às vésperas do Dia da Consciência Negra ou do assédio contra uma assistente virtual do Bradesco mostram que o identitarismo se tornou parte da rotina do noticiário no Brasil.

As elites urbanas, nas quais os principais atores da imprensa e influenciadores das redes sociais costumam estar incluídos, "padecem da culpa burguesa", explica Madeleine. A cultura do cancelamento permite "o alívio da culpa burguesa sem ter de abrir mão de nada" – somente sinalizando virtude pela internet –, o que a torna atrativa para essa classe.

"As elites econômicas são as responsáveis pelo sistema que oprime minorias e vivem dele, sem intenção nenhuma de mudar. Utilizando recursos retóricos em que se declaram pela inclusão, antirracistas, racistas em desconstrução ou qualquer outro clichê, fingem não ser mais o problema para ser parte da solução. Estão 'do lado certo'", observa a autora.

Mas por que a cultura do cancelamento só ganhou relevância nos últimos anos? Ou, como questiona Madeleine, "quando foi exatamente que nos tornamos esta sociedade de bedéis que misturam uma noção distorcida sobre as próprias virtudes com a tentativa autoritária de impor suas crendices aos demais?"

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Para a escritora, parte da resposta está nos algoritmos das redes e em sua forma de manipular a chamada "economia da atenção". A indignação e a possibilidade de sinalizar virtudes ao público virtual ajudam a reter usuários nas redes sociais, o que é interessante para as Big Techs do ponto de vista de seus negócios. "Clicar em cima, compartilhar, dar like, dar deslike, dar print e comentar – falando bem ou xingando – são formas de interação. (…) É esse o principal ativo que move o universo digital. Pessoas que vivem xingando algum tipo de conteúdo na internet receberão das redes sociais toneladas do mesmo tipo de conteúdo. É o necessário para que elas interajam e continuem usando a plataforma."

Essenciais na economia da atenção, os sentimentos são soberanos para o identitarismo. O movimento apoia-se justamente em uma confusão entre sensação subjetiva e fatos objetivos, observa a autora. Neste sentido, "não haveria objetividade de fatos nem de conhecimento" e a experiência individual, subjetiva, seria o que pauta a realidade.

Isso não seria um problema social, na visão de Madeleine, se o identitarismo fosse tratado como o que realmente é: uma teoria crítica ou uma seita religiosa. O problema, para ela está em que grandes atores do debate público dão à lacração o status de ciência, o que representa um grave risco para a sociedade.

Pode parecer exagero tratar os adeptos dessa seita – ou das "olimpíadas de virtude", como também define Madeleine – como uma grande ameaça à democracia. O perigo, observa a autora, reside na forte capacidade do identitarismo de penetrar na cultura com a aceitação de quem detém o poder nas principais esferas do debate público. De fato, não é uma crendice cuja malignidade salte aos olhos, como no caso do nazismo, por exemplo, mas conseguiu "entrar nas universidades e passar a ser tratado como ciência" e "contaminou também a imprensa".

Com essa capacidade de atrair as elites intelectuais mesmo sem nenhuma base científica ou racional, o identitarismo consegue enxertar-se na cultura, principalmente com a ajuda do mundo empresarial – o que envolve não só as Big Techs, mas também o setor publicitário de grandes empresas interessadas em sinalizar virtude por meio de ações que sugerem preocupação com a inclusão social.

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Um dos modos de posicionar uma marca como inclusiva, aliás, "é fazer com que ela se alie a movimentos de linchamento virtual de personalidades vistas como racistas, homofóbicas, misóginas ou transfóbicas", descreve Madeleine. "A epítome desse método é a conta de internet Sleeping Giants, queridinha das agências de publicidade brasileiras", afirma.

Para a autora, esse caldo envolvendo esquerda caviar, imprensa, academia, grandes corporações e usuários virulentos de redes sociais não tem como dar certo para a democracia – e já está dando errado, como nos adianta a experiência da seita da lacração em outros países. Lá fora, diz Madeleine, já fica claro o fracasso da cultura do cancelamento "diante dos desafios do mundo real".

"Vejo, por exemplo, discussões acaloradas sobre 'linguagem inclusiva', o nome que se decidiu dar à linguagem elitista criando gênero neutro num país de analfabetos funcionais", ironiza. "Enquanto por aqui usar linguagem neutra é considerado algo que preste em empresas e universidades, o governo da França – que é praticamente o Centro Acadêmico da Europa – já acabou com a palhaçada."

Ela se refere ao caso da Academia Francesa – instituição pública da França responsável por zelar pelo idioma –, que proibiu o uso da linguagem neutra em escolas. Mais do que tentar vencer o jogo contra o identitarismo, o governo francês modificou o tabuleiro em que ele está sendo jogado: elogiou o propósito da inclusão e da igualdade, mas proibiu a linguagem neutra em escolas e disse que uma solução autêntica para os problemas levantados deve ir "muito além da perfumaria", em referência às invencionices dos proponentes do novo dialeto.

A partir daí, Madeleine divisa um caminho para enfrentarmos a cultura do cancelamento: "É a partir do conhecimento desses fracassos retumbantes e de posturas altivas como a da Academia Francesa que podemos preservar a democracia e a liberdade de expressão", diz. "Se queremos um mundo com liberdade e democracia, o desafio não é vencer o jogo contra o identitarismo, é trocar o tabuleiro em que ele está sendo jogado."

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É preciso, segundo a autora, fugir do vício no impulso reativo e enxergar mais do que malignidade na alma dos adeptos da seita da lacração, evitando dar "vitória à briga". O identitarismo atrai porque tem sido capaz, entre outras coisas, de dar "formas confortáveis de militância a quem não encontra na nossa dinâmica social significado para a própria vida". "É nesse nó que está a solução, em dar significado e missão às pessoas, sobretudo aos jovens", diz. Trocar o tabuleiro, para a autora, não é "devolver na moeda inversa". Envolve, entre outras coisas, aprender a criar pontes. "Dobrar a aposta no sectarismo", segundo ela, "vai produzir cada vez mais grupos sectários".

Madeleine convida o leitor a fugir dessa dinâmica e adotar corajosamente outra via: enxergar a dignidade intrínseca de cada ser humano, mesmo daquele que nos pareça mais detestável. "Só há benefícios coletivos quando reconhecemos a humanidade de todos, a universalidade da dignidade humana e a necessidade de convivência pacífica, cientes das diferenças e fiéis aos nossos princípios."

Para a autora, como sociedade, precisamos nos reconciliar com a nossa história real, "com suas belezas e mazelas" e "encarar o fato de que somos os herdeiros de oprimidos e opressores tentando construir um futuro melhor para os nossos filhos". "Podemos entregar a eles a sina de purgar nossos erros ou a possibilidade de um país", afirma.

Cancelando o cancelamento tem apresentação de Claudio Manoel, humorista do extinto grupo Casseta & Planeta, e posfácio do ex-ministro Aldo Rebelo. O livro já está à venda.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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