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Passaporte da vacina

Sem emergência sanitária, exigência da vacina ainda provoca demissões e perseguições

exigência da vacina
(Foto: Albari Rosa/Foto Digital/Gazeta do Povo)

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Mesmo com o fim do estado de emergência contra Covid-19, assinado pelo ministro da Saúde Marcelo Queiroga, no dia 22 de abril, as sanções aos não vacinados avançam. Trabalhadores expulsos de seus locais de trabalho, servidores públicos exonerados, estudantes impedidos de se matricular em universidades e pais sem poder ver os filhos são apenas alguns exemplos da consequência da adoção do passaporte da vacina por parte de governos estaduais, municipais, instituições de ensino ou mesmo órgãos privados. Embora os questionamentos contra a medida já existissem antes, agora eles têm se tornado ainda mais frequentes e levado as pessoas a se perguntarem até quando esse tipo de medida vai continuar.

Desde o início das discussões sobre o passaporte sanitário, especialistas já argumentavam que a medida não poderia ser considerada realmente eficaz para impedir a disseminação do coronavírus. Isso porque as vacinas disponíveis não eliminam totalmente o risco de contágio pela doença e mesmo vacinados podem ser contaminados e contaminar outras pessoas. Mesmo assim, esse foi um dos principais argumentos usados para justificar a exigência de comprovante de vacina. Ao longo do tempo, as arbitrariedades em torno do passaporte só foram aumentando, como tem mostrado a Gazeta do Povo.

Um dos casos mais recentes ocorreu em Recife (PE), onde um pai foi impedido de acompanhar o parto da esposa por não ter apresentado passaporte vacinal. “Estava com pressão alta e diabete gestacional, tive de ser internada para passar por uma cesariana e precisei passar por tudo isso sozinha, sem meu marido do meu lado. Somos só eu e ele, e não deixaram ele ficar comigo”, contou a parturiente à reportagem.

Em Santa Catarina, uma professora do município de Vital Ramos acabou exonerada depois de não ter apresentado o comprovante de vacinação contra Covid-19. Ela era servidora pública havia 20 anos e apresentou um exame laboratorial comprovando que já tinha anticorpos contra o coronavírus, adquiridos de forma natural após contágio e cura da doença. Mas seus argumentos não foram levados em conta.

Outros trabalhadores e servidores públicos também passam por situações parecidas, como na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), onde quem não se vacina precisa apresentar exames laboratoriais negativos para Covid a cada 72 horas.

“A partir do momento em que o Ministério da Saúde publicar o fim do estado de emergência sanitária no país, as medidas de passaporte sanitário não fazem mais sentido. Aliás, já não faziam antes porque se sabe que a vacina nunca impediu a disseminação do coronavírus”, diz o médico infectologista Francisco Cardoso, assessor especial da Secretaria de Segurança Multidimensional da Organização dos Estados Americanos (OEA) para assuntos de biossegurança.

Para o médico, a exigência do passaporte de vacina só obtinha certo respaldo durante a vigência do estado de emergência e agora precisa ser revista. “Legalmente, a legislação que dá suporte aos passaportes vacinais cai por terra, então, os passaportes sanitários se tornaram ilegais”, defende. O especialista ainda ressalta que a partir de agora o coronavírus deve deixar de ser tratado como uma epidemia e passar a ser visto como outros vírus causadores de doenças respiratórias sazonais, com os quais a população deve aprender a conviver.

“Isso inclui, basicamente, as mesmas medidas usadas para diminuir a disseminação das demais doenças respiratórias, como higiene das mãos, evitar aglomerações nos ambientes onde esses vírus circulam mais, especialmente no fim do ano e inverno, usar máscara em locais onde há maior risco de aquisição desses vírus, ou seja, ambientes hospitalares, e buscar tratamento ao menor sinal de sintomas. E isso sem essa situação, que beira o ridículo, de dizer que não há tratamento para Covid-19”, diz ele.

Judicialização é entrave para fim de medidas abusivas

Embora o Ministério da Saúde possa ser considerado a autoridade máxima de saúde no país - a quem, portanto, caberia a tomada das decisões-chave no combate ao coronavírus -, o excesso de judicialização do tema acabou minando essa função, prevista em lei. Por causa disso, a decisão do Ministério de declarar o fim da situação de emergência sanitária pode não ter impacto direto em relação à exigência do passaporte vacinal.

Como ressalta o doutor em Direito Alessandro Chiarottino, a Lei 13.979/2020, que trata especificamente das medidas de enfrentamento à Covid-19, determina que cabe apenas ao Ministério da Saúde dispor sobre a duração da situação de emergência de saúde pública. Mas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação a medidas de enfrentamento à Covid-19 têm questionado esse entendimento.

O advogado cita como exemplo a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 672. Nela, o ministro do STF Alexandre de Moraes diz claramente que "não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento social e quarentena”.

“É ambíguo porque a lei diz explicitamente que cabe ao Ministério da Saúde decidir sobre a duração da quarentena, mas o ministro [do STF] diz aparentemente o oposto, sem, contudo, declarar o dispositivo da lei inconstitucional. Se ele considera inconstitucional o artigo da lei que afirma que quem decide sobre o período de emergência é o MS, deveria tê-lo dito explicitamente na decisão, mas como ele não o fez, a situação ficou confusa”, diz Chiarottino.

Decisões judiciais têm favorecido passaporte da vacina

Além da ADPF 672, outras decisões do STF têm sido usadas para justificar o passaporte da vacina, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6386 e 6587. Nelas, a Corte firmou o entendimento de que estados e municípios podem determinar que as pessoas se submetam à vacinação compulsória. Para isso, o STF reconheceu que podem ser adotadas medidas restritivas aos não vacinados, como “restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares”.

A Corte ainda esclareceu que essas restrições podem ser impostas “desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas”. Como a Gazeta do Povo vem mostrando, esses itens nem sempre têm sido cumpridos, como a não aceitação de atestado médico em casos em que as pessoas são contraindicadas para as vacinas.

O passaporte da vacina tem sido exigido, por exemplo, de trabalhadores e servidores públicos, que, se não apresentam o documento, são afastados de suas funções, impedidos de entrar em seus locais de trabalho, têm dias de serviço descontados e podem ser demitidos por justa causa ou exonerados.

“Não sou uma criminosa, não cometi nenhuma infração dentro da escola. Me sinto desrespeitada. Como se fosse a coisa mais errada do mundo querer trabalhar e querer ter domínio sobre meu corpo”, disse uma servidora pública, agente de organização escolar de um colégio estadual de São José dos Campos, interior de São Paulo, à reportagem.

Outra decisão controversa do STF foi em relação à vacinação de crianças. Em um comunicado dirigido aos Ministérios Públicos dos estados e do Distrito Federal, o ministro Ricardo Lewandowski pediu que os MPs empreendessem "as medidas necessárias" para a vacinação das crianças. Depois disso, vários MPs e mesmo juízes passaram a defender que os pais não tinham direito de decidir sobre vacinar ou não seus filhos e que quem não vacinasse poderia até perder a guarda das crianças.

O passaporte de vacina infantil passou a ser exigido como requisito para acesso às aulas e, em São Bernardo do Campo, cidade no ABC paulista, a prefeitura chegou a estudar a criação de salas de aula específicas para crianças não vacinadas. Em outro caso, uma mãe entrou na Justiça para que a filha pudesse frequentar as aulas sem estar vacinada contra Covid, mas teve o pedido negado. Além de extinguir a ação, a juíza enviou o caso para o Ministério Público e para o Conselho Tutelar.

Passaporte da vacina nas universidades

A Corte também decidiu que instituições de ensino superior teriam autonomia para determinar suas próprias medidas de enfrentamento à Covid-19. Por causa disso, várias universidades impuseram a apresentação do comprovante de vacina como condição para frequentar as aulas e mesmo fazer a matrícula de estudantes, além de penalizar professores que não se vacinaram.

Em 29 de dezembro de 2021, o Ministério da Educação (MEC) havia orientado as universidades federais a não exigir o comprovante de vacinação contra a Covid-19, que não poderia ser condicionante para a retomada das atividades presenciais no ensino superior – na mesma linha de um parecer sobre o tema da Advocacia-Geral da União (AGU).

Insatisfeitas, as universidades recorreram ao STF para poder exigir o passaporte de vacina – e foram atendidas. Depois dessa decisão, a maioria das instituições federais aderiu ao passaporte sanitário. Na Universidade Federal de Sergipe (UFS), por exemplo, além de não poder entrar na universidade, professores, servidores e alunos sem comprovante de imunização são "denunciados" à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal (MPF).

Outro exemplo é a Universidade Federal Tecnológica do Paraná, que publicou uma resolução sobre o assunto em fevereiro deste ano. Segundo o documento, alunos, professores e servidores só podem entrar na universidade se comprovarem ter completado o esquema vacinal. Como em outras universidades públicas, a medida é encarada por parte da comunidade acadêmica como uma arbitrariedade

“Nós só queremos que nossos direitos como cidadãos sejam respeitados. Não somos contra vacina, quem quer se vacinar deve ter esse direito, mas não se pode aplicar sanções ilegais a quem resolve não se vacinar”, diz o professor Lucas Ribeiro, do Departamento de Matemática do campus da UTFPR na cidade de Medianeira.

O professor conta que professores e servidores que não se vacinaram precisam apresentar um laudo médico comprovando a existência de uma condição que impossibilite a vacina ou exames laboratoriais de Covid-19 a cada 72 horas, caso queiram continuar trabalhando. Feitos sem indicação médica, esses exames não são cobertos pelo plano de saúde e precisam ser pagos pelos próprios servidores. “É uma ilegalidade, os servidores precisam pagar para trabalhar. E quem se recusa a isso, não pode trabalhar e tem salário cortado”, diz ele.

Outra medida implantada foi impedir que professores não vacinados participem de editais de projetos de pesquisa e extensão financiados pela universidade. “Isso afeta diretamente a progressão de carreia dos professores. Somos cobrados a participar desses projetos, faz parte da produção científica do professor, mas a universidade está nos impedindo de participar”, diz Ribeiro.

Ele conta que, juntamente com outros professores e servidores, criou um grupo para debater o assunto e cobrar que seus direitos sejam respeitados. Por meio de ofícios encaminhados ao Conselho Universitário da UTFPR, eles tentam argumentar sobre a ilegalidade das medidas, especialmente depois da decisão do Ministério da Saúde de colocar fim à situação de emergência sanitária. “Nós não queremos briga, nem judicializar nenhuma questão. Só estamos lutando por nossos direitos. Não vou admitir que me impeçam de trabalhar. É um direito meu”, salienta.

Por enquanto, mesmo após o fim da emergência sanitária, o passaporte da vacina na UTFPR e dezenas de outras instituições públicas de ensino permanece em vigor.

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