Na área de 170 mil metros quadrados no Fazendinha, a luz das ligações irregulares ficou acesa durante toda a noite: tensão| Foto: Fotos: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Garantia está na Constituição

O advogado da organização não-governamental Terra de Direitos, Vinícius Gessolo de Oliveira, lembra que a Constituição de 1988 garante o direito à moradia e que o Estatuto das Cidades, de 2001, dita os mecanismos para a regularização de áreas públicas e privadas ocupadas. Para Oliveira, a falta de interesse dos administradores públicos e a especulação imobiliária dificultam a execução de programas de habitação. Na opinião do advogado, os gestores públicos deveriam ser responsabilizados pela falta de atenção à área habitacional. "O grande desafio é garantir a aplicação de forma integrada de todos os instrumentos previstos em lei", diz. (MGS)

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Estimativa é de 850 áreas irregulares

Ponta Grossa - Movimentos sociais estimam que Curitiba e região metropolitana têm 850 loteamentos irregulares ou ocupações como a do bairro Fazendinha. E a previsão é de que o número cresça: segundo a coordenadora nacional da União Nacional por Moradia Popular, Maria das Graças Silva de Souza, a maioria das prefeituras do estado não tem sequer secretaria de habitação – como é o caso de Curitiba. O cenário não deverá mudar a curto prazo, já que em 44% dos municípios paranaenses os prefeitos foram reeleitos.

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A noite inteira foi de espera e tensão. A indesejada polícia poderia chegar a qualquer momento entre 5 e 7 horas da manhã. Todas as entradas já estavam bloqueadas por troncos e emaranhados de arame farpado, os homens a postos em vigília e as mães com os filhos à mão. A barreira humana, sem arma nenhuma, estava pronta para se interpor entre a tropa de choque e o pedaço de chão a ser defendido. O alívio só viria com o sol a pino. Não seria ontem que a Secretaria de Segurança Pública do Paraná iria executar o mandado de reintegração de posse da área de 170 mil metros quadrados no bairro Fazendinha, em Curitiba, ocupada por famílias sem-teto desde o último dia 6 de setembro.

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A reportagem da Gazeta do Povo passou uma noite entre os acampados, das 21 horas de quarta-feira às 9 horas de ontem. A despeito da organização, com ruas definidas e a distribuição da área em 29 quadras, o terreno é tão grande que nem os líderes do movimento sabem ao certo os números reais da ocupação. As informações divergem. Seriam 1,5 mil lotes demarcados com 200 metros quadrados, em média, metade deles com barraco construído ou em construção, e metade à espera dos posseiros já definidos. Cogita-se 6 mil pessoas, mas anteontem à noite não chegavam a 500 na assembléia ao ar livre que definiria a estratégia de resistência ao despejo.

A juíza da 19ª Vara Cível de Curitiba, Julia Maria Tesseroli, concedeu reintegração de posse à dona do imóvel, a Varuna Empreendimentos Imobiliários. A Secretaria de Segurança Pública informa que o despejo pode acontecer em qualquer dia, nas primeiras horas da manhã, mas não antecipa a data. Os sem-teto acreditavam que seria ontem, mas asseguram estar preparados também para os próximos dias. Há um mês eles têm recebido apoio da União Nacional pela Moradia Popular, que os têm dividido em lideranças setoriais no acampamento. Os barracos já habitados são servidos de ligações irregulares de água e energia elétrica.

A ocupação tem sido criticada pelos vizinhos da área, que se sentem inseguros. No último domingo, duas pessoas morreram num tiroteio. Contudo, durante toda a noite em que a reportagem esteve no acampamento não houve um incidente sequer, nem mesmo os tiroteios relatados a rádios locais por vizinhos da ocupação. "Aqui também há pessoas mal- intencionadas, como em qualquer outro lugar, mas a maioria não pode ser rotulada de bandido por causa de dois ou três", diz um dos sem-teto, que não quer ser identificado. Procedentes de diferentes cidades do estado, todos têm em comum o histórico de pobreza e a esperança de conseguir a posse de um lote.

Os imigrantes

Carlos Casemiro Grecgvoczki, 39 anos, Rosalina dos Santos, 36 anos, e os sete filhos, com idades entre 6 e 15 anos, se espremem num barraco de dois metros por três. O espaço se resume a pouco mais de meio metro quadrado para cada um, ou algo parecido com o tamanho de uma caixa de televisão de 29 polegadas. Neste cubículo, feito com restos de compensado, não maior do que uma cela de delegacia, estão as últimas esperanças do casal que há um mês juntou os trapos, agarrou a prole e embarcou na rodoviária de Guarapuava, no Centro-Oeste do Paraná, em busca de uma nesga de chão na invasão do Fazendinha.

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Com uma renda instável de R$ 200 por mês, pelos serviços eventuais de Carlos, a família gastava R$ 150 em aluguel, tornando-a totalmente dependente da caridade de grupos religiosos. As notícias da invasão chegaram a Guarapuava pelos jornais e pela televisão, levando alguns beneméritos a despachá-los para a capital em busca de melhor sorte. Chegaram três dias depois da ocupação, tão dependentes dos outros como antes. Pior: numa cidade estranha, Carlos ainda não encontrou onde fazer seus bicos. Na quarta-feira, a única refeição da família havia sido pão seco, até ganhar uma panela de sopa na cozinha comunitária do acampamento, já perto da meia-noite.

A poucos metros dali, José Aparecido da Silva e Ciriacra Aparecida Cardoso dividem o barraco de iguais dimensões com os seis filhos e uma irmã dela. Juntos, somam uma renda média mensal de R$ 700, ele fazendo bicos como serralheiro, ela como auxiliar em buffet de eventos. O aluguel da casa no bairro Tatuquara levava metade dos ganhos, restando metade para roupas, comida e material escolar das crianças, de 3 e 13 anos. Se despejados, não terão nem para onde recorrer, já que a casa alugada pertence a um vereador não reeleito que já pediu as chaves de volta para vendê-la. "Agora é que a gente depende ainda mais de ficar nesse lugar", diz José.

Em outro ponto da ocupação, o barraco de compensado é tudo o que resta ao ex-comerciante que já teve casa e carro próprios, mas teve de vender para cobrir os custos de tratamento médico dele e da mulher, morta há quatro meses. Valentim Silveira, de 56 anos, percorre lentamente as vielas enlameadas segurando o umbigo rompido devido ao esforço de carregar madeira quando caminhoneiro. "Se fizer força ele salta para fora, e aí eu posso morrer", conta. Esse não é o único problema dele, cego do olho esquerdo e apenas 8% de visão no direito. Não pode ser operado nem do olho nem do umbigo porque não pode tomar anestesia.