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Sete décadas aos pés de Curitiba

Salvador Dalí faz caras e bocas na estampa que enfeita o relógio de parede de Núncio D'Aquino, 90 anos. São 15 horas de uma terça-feira qualquer. Mas não é de hoje que D'Aquino – como ficou conhecido – e Dalí fazem companhia um ao outro. O artista dispensa rapapés. Já o veterano é um daqueles sapateiros que ainda fazem calçados sob medida e, com folga, um dos comerciantes há mais tempo em atividade na cidade de Curitiba. Sua folha corrida soma 70 anos de serviços prestados, no mesmo endereço: uma loja de fundos na altura em que a Rua Emiliano Perneta quase se encontra com a Visconde do Rio Branco.

Não é só o tempo de ofício, o fato de estar no mesmo ponto toda vida e a longevidade de D'Aquino que impressionam. As histórias que conta, sentado no sofá velho da sapataria – de frente para o relógio em que os bigodes de Dalí se confundem com os ponteiros – é que são, digamos, surreais. A memória até falha vez em quando, mas nada que atrapalhe os enredos que saem da boca do homem que cruzou o século 20 calçando os curitibanos. "Eu ia ficar em casa fazendo o quê? Comecei com calçados, vou terminar com calçados. Sigo assim até morrer", declara.

D'Aquino, o rei dos sapatos, é um homem de gestos largos, fala que vai do pianíssimo ao fortíssimo e dono de irresistíveis recursos de oratória. Em miúdos, um sedutor – mesmo usando sapatos [de sua autoria] sem meias, lacrimejando sem parar por causa de uma operação recente de catarata e se dizendo farto de dar entrevistas. "Com essa, são quatro. Já falei tudo", exagera. Dividido o número de reportagens por 90, sua idade, daria uma a cada 22,5 anos. É vero. O sapateiro se rende, para sorte do interlocutor – que não vai demorar a se perguntar por que raios foram 4 e não 40 entrevistas. Bem podia.

O sapateiro martela casos e verdades impublicáveis, a não ser que Dalton Trevisan o faça. A Curitiba que D'Aquino viu passar pela Emiliano Perneta não é adornada por lambrequins nem povoada de nonnas falastronas que cultivam canteiros de gerânios nas janelas. Fazer calçados é uma atividade íntima demais para ilustrar contos da carochinha. É preciso mostrar os pés, tirar medidas, voltar para experimentar, sentir a textura do couro – um ritual mais eletrizante que prova do vestido de noiva. É preciso também traduzir desejos e gostos – se o bico é moderado ou persa, aquele que tem a pontinha arrebitada.

Sinal dos tempos

Hoje, obviamente, não é mais assim. Sapatos são comprados em qualquer esquina e a probabilidade de cruzar com alguém usando um modelo igual ao seu é de nove em dez. Mas houve um tempo de delicadeza em que a liturgia da mão no tornozelo, mede, corta, alinhava, costura e experimenta deve ter feito muita gente passar saltitando pelo corredor de 30 passos que levam da rua ao sombrio ateliê de D'Aquino.

A imagem de senhoras e senhores de fino-trato cruzando o terreno tem o sabor de um filme de época. Difícil mesmo é arrancar do mestre sua lista de clientes ilustres, cuja identidade se confunde com a própria capital. "Tinha todos os nomes marcados, mas dei fim na papelada", avisa, o que para bons especuladores basta. Para Núncio, revelar clientes é um atentado ao pudor. Só se por deslize. "Sua freguesa preferida?" "Madame Vasconcelos", distrai-se, sobre Ângela Vasconcelos, a carioca-curitibana que em 1964 trouxe para o Paraná o título inédito de Miss Brasil. Além da "beleza imponente", como define o artesão, havia o fato de que ela não era como as outras. Não lera O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, mas filosofia contemporânea. Calçá-la era tarefa para ser feita de joelhos. E fim de papo.

A lista de inonimados que cruzaram fronteiras para fazer um sapato com o comerciante da Emiliano inclui de debutantes histéricas por um salto alto capaz de deixá-las 18 centímetros mais altas a atores da Globo. De gente do show business à nata da sociedade curitibana. Entre todos esses figurões, uma boa leva de caloteiros que não pagaram a conta. "E a Vera Fischer, não veio um dia aqui?", dispara um dos ajudantes da sapataria. Negativo. Nem sob tortura esses nomes viram palavras fora da boca, pedras fora da mão.

Já a lista de ilustres clientes do pai, o siciliano Rosário D'Aquino, com quem aprendeu o ofício, não guarda tantos segredos. Sua trajetória deveria ir para o livro de ouro da imigração italiana no Brasil. Quando chegou da Europa, dois anos depois da assinatura da Lei Áurea, o forasteiro plantou tomates em Cuiabá e abriu uma fábrica de refrigerantes. Tristes trópicos – nada dava certo. Até que mostrou traquejo para um ofício que parecia ser privilégio de uns poucos imigrantes: fazer sapatos. Foi dos melhores.

O próprio Emiliano Perneta, que dá nome à rua do estabelecimento, recorreu a Rosário para satisfazer seus impulsos de dândi. Seguido da família Camargo, do interventor Manoel Ribas, dos barões do mate, de lapeanos ilustres, do clã Munhoz da Rocha. Núncio, então garoto, assistiu a tudo de camarote. Enquanto aprendia, saracoteava atrás de outros destinos que não aquele.

Núncio teve fazenda de café em Paranavaí, fábrica de malas na Água Verde, restaurante no Centro Cívico. Foi lojista, empresário, pintor. Exato, pintor. Aconteceu nos verdes anos. Tinha a vida pela frente e um amigo no meio do caminho: Miguel Bakun. É com folga o relato mais emocionado do veterano. Do-tipo-que-não-se-largava, a dupla circulou por uma cidade que amava os sapatos da família D'Aquino – sinal de status e elegância – mas desdenhava da arte meio animista daquele estranho no mundo das artes, sujeito sem eira nem beira, esquisitão, trágico. E o mais genial de todos. D'Aquino viveu para contar. Inclusive para confidenciar que deu uma mãozinha nas pinturas que Bakun fez no sótão do Castelo do Batel.

Mas não teve jeito – a liga do jovem D'Aquino com os calçados estava escrita. Foi-se o café, as fábricas, as lojas espalhadas pelo Centro, e os sonhos de pintura. "Minha juventude foi uma fábula. Mas comecei com os sapatos e vou acabar com eles", diz o discreto sapateiro. Ele bem que fala com gosto do passado, mas tem mais o que fazer. Ou pelo menos avisar que não pode fazer. Dispensa o freguês que interrompe a entrevista atrás de um ajuste numa bota de equitação. "Meu filho, você monta a cavalo?" "Não", o rapaz não monta, comprou a bota para compor um traje e se deu conta da sobra na panturrilha. "Impossível – isso não tem conserto", dispara, com a lendária falta de pachorra para lidar com novidades que lhe aparecem de tempos em tempos.

A maior delas, de uma década para cá, atendem pelo nome de drag queens. A notícia de que existe um sapateiro que trabalha sob medida exerce sobre os performers o efeito de uma notícia sobre a cura do câncer. São capazes de formar caravanas a São Paulo atrás de Fernando Pires, um dos bons sapateiros do ramo. Ou a cruzar o beco por onde um dia passou madame Vasconcelos e encomendar um sapataço feito por D'Aquino. A passarela já foi atravessada por um dos mais famosos drags da paróquia, Brigitte Beaulieu. Não é propriamente uma encomenda que faça D'Aquino sapatear de alegria. "A regra é atender a freguesia", encurta.

Outra clientela que trouxe um toque de diversidade ao antigo ateliê são as garotas que se apresentam em casas de shows e precisam ganhar mais presença no palco – além de elevar o potencial do derrière. Nada que aflija a Super-D'Aquino. As moças que dão um duro danado nos palcos da vida saem não só mais altas como levando nos pés uma grife legitimamente curitibana. É lucro certo. Com sorte, leva-se uma lição de casa. "Está vendo essa pelica? Passe a mão. É de primeira", afirma, sobre o material que vai forrar um dos 15 pares que a sapataria ainda coloca na praça todos os meses. Podem ser peças simples, em prestações, vendidas a preços módicos de R$ 200, dotadas de infames solados de plástico. Mas são de raça. D'Aquino Calçados – o homem que pergunta as horas para Salvador Dalí.

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