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Luciana Cortes, a biblioteca caseira que divide com o marido Fernando e uma das famosas caixas que atiçaram a participação popular no Rio Bonito. | Ivonaldo Alexandre / Gazeta do Povo
Luciana Cortes, a biblioteca caseira que divide com o marido Fernando e uma das famosas caixas que atiçaram a participação popular no Rio Bonito.| Foto: Ivonaldo Alexandre / Gazeta do Povo

Pouco tempo atrás, se perguntassem à estudante de Direito Luciana Cortes de Oliveira, 37 anos, o que era uma fila para consulta médica, ela faria caras e bocas. “Uma abstração”, brinca. Moradora da Água Verde, tinha lá as suas pedras no sapato, mas nada que a obrigasse pular da cama às 4 da madrugada e passar horas à espera de uma senha.

Até que lhe veio o infortúnio: em 2012, sofreu um roubo seguido de seis horas de sequestro, desenvolveu síndrome do pânico, deprimiu-se e decidiu voltar para o regaço dos seus pais, levando marido e dois filhos a tiracolo. Novo endereço: Moradias Rio Bonito, loteamento popular com espantosos 28 mil habitantes, no Campo de Santana, a 33 quilômetros do Centro.

Veja o loteamento no mapa

Rio Bonito desafiou previsões e se tornou marco na capital

De tudo o que encontrou na periferia – de ônibus passando de hora em hora a crateras lunares em vez de asfalto –, o que mais lhe impressionou foi a quantidade de pessoas, no meio da noite funda, acampadas na porta da unidade de saúde, como se fosse ali um campo de refugiados.

“Fiquei revoltada. Aquilo virava quadra. Perguntei como é que eles não botavam a boca no mundo. Ninguém me respondeu”, conta a mulher que decidiu comandar o serviço ela mesma. Mostrou a língua e soltou o verbo. Só faltou falar com o bispo, como se dizia, e nada. Foi quando se lembrou do personagem secundário de um longa-metragem que lhe caiu no gosto – Um sonho de liberdade (EUA, 1995), de Frank Darabont. Na trama, um “filme de cadeia” estrelado por Tim Robbins e Morgan Freeman, há um bibliotecário velhinho que manda cartas às autoridades, pedindo livros, estantes e fichários. Peleja, mas consegue. Seguiria o exemplo.

Misericórdia

“Bom dia, meu nome é Luciana e estou aqui para ouvi-los...” É assim que começa sua fala, nas visitas madrugueiras à Unidade de Saúde Rio Bonito. Caderno universitário nas mãos, faz as vezes de escrevinhadora das cartas, prometidas às autoridades. Ouve histórias de plasmar: “A senhora anda quatro quilômetros e meio para chegar aqui? Misericórdia”. Anota as reclamações – do médico pouco dado ao batente, passando ao que acontece da porta para fora: som alto, cachorro que não para de latir, bandidagem que grassa solta, excesso de ruas com o sobrenome “Bertoldi” e a lamúria hors concours – falta de vaga nas creches.

Diante da demanda, a ativista decidiu deixar “caixas de correio” pela comunidade, para que os moradores postassem ali seus acertos de contas, de próprio punho. Dona de um pequeno brechó, Luciana catou caixas, encapou-as com papel de presente e mandou imprimir e colar o reclame “UMA CARTA PARA MUDAR”. Deixou caixa na padaria, na farmácia, no açougue. São mais de 20 boxes circulando. Ficam pela boca.

Semana a semana, ajudada pelo marido, Fernando, Luciana recolhe as missivas, classifica-as e se prepara para levá-las, breve, ao lugar de direito: à Câmara Municipal o que é da Câmara, à Fundação de Ação Social o que é da Fundação, e assim por diante. “Quero chegar a 7 mil cartas. Entregues nas repartições, cada uma delas vai gerar um protocolo. Digo pro povo – escrevam uma carta por dia”, bota meta, causa impressão.

Vila Lambari

Os resultados apareceram antes mesmo de terminar as remessas que, aposta, cairão feito plumas na mesa de vereadores, secretários e burocratas. O número de atendimentos na unidade de saúde passou de 22 para 60 por dia. No lugar onde não havia termômetros, hoje 38 peças estão à disposição de mães aflitas e seus pequenos em febres. Até a Vila Lambari, uma ocupação nascida nas rebarbas do Rio Bonito, sentiu o efeito da corrente cívica informal iniciada por Luciana.

A pressão por regularização fundiária, asfalto e tudo mais bateu nas portas do poder público, causando enxaquecas. Os moradores somam 23 ofícios às autoridades – incluindo o saibro, urgente. “Tentaram me inibir, é claro. Mas a gente só quer cumprir a Constituição”, conta.

Quero chegar a 7 mil cartas. Entregues nas repartições, cada uma delas vai gerar um protocolo. Digo pro povo – escrevam uma carta por dia.

Luciana Cortez de Oliveira estudante de Direito e ativista

Se tem detratores, Luciana conta com apoios. Como muitos moradores têm dificuldade com a escrita, voluntários se somaram à empreitada, como a vizinha Lindacir Monteiro, 71 anos. Há quem dite in loco, a turma do movimento escreve. Diante de caligrafias que mais parecem criptografias, uma velha máquina de escrever Lettera também entrou na roda: muitas cartas são datilografadas. Outras são escritas no calor da hora – no dia em que a reportagem da Gazeta do Povo esteve no Rio Bonito, presenciou usuários da unidade de posse da caneta Bic, lavrando seu protesto. Confiam em Luciana – não por menos.

Luciana Cortez de Oliveira nunca se imaginou à frente de um movimento político e social. Alta – tem 1,76 m, mas parece mais se está alerta – e comunicativa, cumpriu todos os destinos que lhe previram. Na mocidade, trabalhou como modelo fotográfico para magazines de vestidos de noiva; atriz – fez uma ponta no documentário Preto no Branco – negros em Curitiba, do prestigiado cineasta curitibano Luciano Coelho; ganhou medalhas de atletismo, até ser traída pelos meniscos. Como tinha uma “nada mole vida”, trabalhava – não por acaso – como carteira nos Correios.

Loteamento desafiou previsões e se tornou marco da capital

“O Rio Bonito não enche – o Rio Bonito cresce.” A piada não tem muita graça, mas é pura verdade. Iniciado em 2005, o loteamento não despertava muitas paixões. Antiga área de hortifrutigranjeiros do Mercadorama, ganhou 6,2 mil lotes e infraestrutura básica. Mas nada que o fizesse parecer menos longe e menos parecido com o complicado Tatuquara – um dos seus vizinhos. Mais parecia um sertão perdido, com poeira demais e urbanidade de menos.

Mesmo com quase tudo contra, a vila não parou de receber gente, até ultrapassar 28 mil habitantes. Parte dessa explosão populacional bateu na porta da unidade de saúde. “Nossa população é formada por casais jovens, em idade de ter filhos. É aqui que Curitiba cresce”, resume a profissional de saúde Débora Stremel Ribeiro, oito anos de serviços prestados ao Rio Bonito. Ela vê na iniciativa das cartas uma oportunidade de corrigir os rumos do loteamento, garantindo mais lazer e segurança.

Embora viva um autoexílio no Rio Bonito, Luciana Cortez não pretende sair dali tão cedo. Tem apoio. A população fez dela presidente do Conselho de Saúde. Difícil quem não conheça a “guria das cartas”, aquela “sempre cheia de ideias”. A última foi bater na porta das quatro escolas da região, sugerindo que a prática das “mal traçadas linhas” seja uma atividade pedagógica. Teve apoio. (JCF)

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