Pouco tempo atrás, se perguntassem à estudante de Direito Luciana Cortes de Oliveira, 37 anos, o que era uma fila para consulta médica, ela faria caras e bocas. “Uma abstração”, brinca. Moradora da Água Verde, tinha lá as suas pedras no sapato, mas nada que a obrigasse pular da cama às 4 da madrugada e passar horas à espera de uma senha.
Até que lhe veio o infortúnio: em 2012, sofreu um roubo seguido de seis horas de sequestro, desenvolveu síndrome do pânico, deprimiu-se e decidiu voltar para o regaço dos seus pais, levando marido e dois filhos a tiracolo. Novo endereço: Moradias Rio Bonito, loteamento popular com espantosos 28 mil habitantes, no Campo de Santana, a 33 quilômetros do Centro.
Rio Bonito desafiou previsões e se tornou marco na capital
De tudo o que encontrou na periferia – de ônibus passando de hora em hora a crateras lunares em vez de asfalto –, o que mais lhe impressionou foi a quantidade de pessoas, no meio da noite funda, acampadas na porta da unidade de saúde, como se fosse ali um campo de refugiados.
“Fiquei revoltada. Aquilo virava quadra. Perguntei como é que eles não botavam a boca no mundo. Ninguém me respondeu”, conta a mulher que decidiu comandar o serviço ela mesma. Mostrou a língua e soltou o verbo. Só faltou falar com o bispo, como se dizia, e nada. Foi quando se lembrou do personagem secundário de um longa-metragem que lhe caiu no gosto – Um sonho de liberdade (EUA, 1995), de Frank Darabont. Na trama, um “filme de cadeia” estrelado por Tim Robbins e Morgan Freeman, há um bibliotecário velhinho que manda cartas às autoridades, pedindo livros, estantes e fichários. Peleja, mas consegue. Seguiria o exemplo.
Misericórdia
“Bom dia, meu nome é Luciana e estou aqui para ouvi-los...” É assim que começa sua fala, nas visitas madrugueiras à Unidade de Saúde Rio Bonito. Caderno universitário nas mãos, faz as vezes de escrevinhadora das cartas, prometidas às autoridades. Ouve histórias de plasmar: “A senhora anda quatro quilômetros e meio para chegar aqui? Misericórdia”. Anota as reclamações – do médico pouco dado ao batente, passando ao que acontece da porta para fora: som alto, cachorro que não para de latir, bandidagem que grassa solta, excesso de ruas com o sobrenome “Bertoldi” e a lamúria hors concours – falta de vaga nas creches.
Diante da demanda, a ativista decidiu deixar “caixas de correio” pela comunidade, para que os moradores postassem ali seus acertos de contas, de próprio punho. Dona de um pequeno brechó, Luciana catou caixas, encapou-as com papel de presente e mandou imprimir e colar o reclame “UMA CARTA PARA MUDAR”. Deixou caixa na padaria, na farmácia, no açougue. São mais de 20 boxes circulando. Ficam pela boca.
Semana a semana, ajudada pelo marido, Fernando, Luciana recolhe as missivas, classifica-as e se prepara para levá-las, breve, ao lugar de direito: à Câmara Municipal o que é da Câmara, à Fundação de Ação Social o que é da Fundação, e assim por diante. “Quero chegar a 7 mil cartas. Entregues nas repartições, cada uma delas vai gerar um protocolo. Digo pro povo – escrevam uma carta por dia”, bota meta, causa impressão.
Vila Lambari
Os resultados apareceram antes mesmo de terminar as remessas que, aposta, cairão feito plumas na mesa de vereadores, secretários e burocratas. O número de atendimentos na unidade de saúde passou de 22 para 60 por dia. No lugar onde não havia termômetros, hoje 38 peças estão à disposição de mães aflitas e seus pequenos em febres. Até a Vila Lambari, uma ocupação nascida nas rebarbas do Rio Bonito, sentiu o efeito da corrente cívica informal iniciada por Luciana.
A pressão por regularização fundiária, asfalto e tudo mais bateu nas portas do poder público, causando enxaquecas. Os moradores somam 23 ofícios às autoridades – incluindo o saibro, urgente. “Tentaram me inibir, é claro. Mas a gente só quer cumprir a Constituição”, conta.
Quero chegar a 7 mil cartas. Entregues nas repartições, cada uma delas vai gerar um protocolo. Digo pro povo – escrevam uma carta por dia.
Se tem detratores, Luciana conta com apoios. Como muitos moradores têm dificuldade com a escrita, voluntários se somaram à empreitada, como a vizinha Lindacir Monteiro, 71 anos. Há quem dite in loco, a turma do movimento escreve. Diante de caligrafias que mais parecem criptografias, uma velha máquina de escrever Lettera também entrou na roda: muitas cartas são datilografadas. Outras são escritas no calor da hora – no dia em que a reportagem da Gazeta do Povo esteve no Rio Bonito, presenciou usuários da unidade de posse da caneta Bic, lavrando seu protesto. Confiam em Luciana – não por menos.
Luciana Cortez de Oliveira nunca se imaginou à frente de um movimento político e social. Alta – tem 1,76 m, mas parece mais se está alerta – e comunicativa, cumpriu todos os destinos que lhe previram. Na mocidade, trabalhou como modelo fotográfico para magazines de vestidos de noiva; atriz – fez uma ponta no documentário Preto no Branco – negros em Curitiba, do prestigiado cineasta curitibano Luciano Coelho; ganhou medalhas de atletismo, até ser traída pelos meniscos. Como tinha uma “nada mole vida”, trabalhava – não por acaso – como carteira nos Correios.
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