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O novo mandato de Lula (PT) na Presidência da República é visto por uma parcela de militantes do partido como uma oportunidade aguardada há tempos para editar nova edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). O programa, que tem como função nortear a atuação do poder público em relação aos direitos humanos no país, existe desde 1996 e recebeu sua terceira e mais recente atualização em 2009, no final do segundo mandato de Lula na presidência, em meio a críticas de vários setores da sociedade, como a imprensa, religiosos, empresários e militares.
O documento inicial propunha, por exemplo, punição com a perda da concessão de rádio e TV a veículos de comunicação que não tratassem os direitos humanos da forma proposta pelo partido. Na época, a forte resistência a dispositivos do PNDH-3 fez com que Lula voltasse atrás e suspendesse trechos do decreto publicado.
A ideia de reeditar o programa e avançar em temas considerados importantes para o partido, é defendida principalmente pelo setorial petista de Direitos Humanos. Durante o Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT, realizado em dezembro de 2021, o setorial, composto por lideranças de 21 estados mais o Distrito Federal, aprovou diversas propostas com o objetivo de serem aplicadas em caso de vitória de Lula nas eleições.
Uma delas é “convocar, nos primeiros dias de governo, uma grande Conferência Nacional Popular de Direitos Humanos, que vai desenhar as linhas mestras do PNDH-4, recriando e reconstruindo toda arquitetura institucional das políticas de proteção, defesa e promoção dos DH no Brasil”.
Outras figuras influentes do partido, como Nilmário Miranda, ex-ministro de Direitos Humanos no governo de Lula, que tem participado de reuniões do grupo de trabalho sobre o tema na equipe de transição do governo, apoiam a ideia de reeditar o programa logo no início do novo mandato de Lula. “Tão logo acabar esse desgoverno, o Brasil terá que, urgentemente, trabalhar para um PNDH-4”, disse Miranda, recentemente, ao jornal Extra Classe.
Lideranças do PT que encabeçam a equipe de transição, no entanto, têm evitado se manifestar sobre o tema. A Gazeta do Povo tentou contato com a deputada federal Maria do Rosário, que coordena o grupo temático de Direitos Humanos na equipe de transição do novo governo, para tratar do assunto, mas sua assessoria alegou indisponibilidade de agenda.
Em gestão petista, PNDH subiu de oito para mais de 500 medidas
Os programas nacionais de direitos humanos em diferentes países tiveram início a partir de recomendação estabelecida na Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1993. No Brasil, a primeira edição do programa foi editada em 1996 durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Em 8 artigos, o programa propunha um levantamento sobre a situação dos direitos humanos no país, bem como a criação de medidas para assegurar o cumprimento dessas garantias, em especiais quanto àquelas presentes no artigo 5º da Constituição Federal, como os direitos à vida, à igualdade, à segurança, à liberdade e à propriedade.
A segunda edição, datada de 2002 durante o segundo mandato de FHC, trouxe também 8 artigos e focou na redução de condutas e atos de violência, intolerância e discriminação, e na diminuição das desigualdades sociais.
Já o PNDH-3, cujo decreto foi publicado em dezembro de 2009, foi a primeira edição do programa feita durante um governo petista. Em contraste com os oito artigos de cada decreto anterior, a mais recente disposição trouxe mais de 500 propostas em um extenso documento criticado por decretar medidas relacionadas a temas sensíveis que não passaram pelo Congresso Nacional.
Entre as medidas mais questionadas do texto estavam a descriminalização do aborto; a proibição de símbolos religiosos em locais públicos; a modificação das regras para a reintegração de posse de terras invadidas no país, o que era visto por críticos do programa como possível estímulo para invasões do MST; mudanças nos currículos escolares; a criação da Comissão da Verdade, para apurar torturas e desaparecimentos durante a ditadura militar, e menção à “desconstrução da heteronormatividade”.
Outro ponto bastante criticado foi o relacionado à liberdade de imprensa – o partido propunha a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação com base na forma como esses veículos abordavam os direitos humanos, prevendo punições aos que cometessem “violações”. As punições poderiam chegar à cassação, por parte do governo federal, de concessões de rádio e TV.
Na época, o senador Arthur Virgílio, então líder do PSDB no Senado, chegou a apresentar um Projeto de Decreto Legislativo para que o programa fosse anulado. Na fundamentação da proposta, o parlamentar argumentou que o conteúdo do PNDH “colide com princípios constitucionais essenciais como o da livre iniciativa privada, o direito de propriedade e a liberdade dos meios de comunicação, contendo diretrizes político-ideológicas parciais e totalitárias que restringem os direitos e garantias individuais e fragilizam as instituições democráticas”.
As críticas fizeram com que, em maio de 2010, Lula editasse novo decreto suspendendo algumas das medidas que foram alvo de mais críticas – a grande maioria das determinações, entretanto, seguiram válidas.
No ano passado, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, do governo federal, deu início a um grupo de trabalho com o objetivo de revisar o atual PNDH e propor aprimoramentos ao programa. À Gazeta do Povo, o ministério informou que “a produção do relatório final das atividades do Grupo de Trabalho (GT) foi concluída e se encontra em fase final de tramitação neste órgão”.
Medidas ensaiadas por setorial de direitos humanos foram apagadas do site do PT durante campanha eleitoral
Entre as resoluções definidas no Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT, de dezembro de 2021, que foram validadas na reunião do Coletivo Nacional em fevereiro deste ano, várias delas atingem campos sensíveis, como o da segurança pública. No rol de sugestões constam, por exemplo, desencarceramento em massa, desmilitarização das polícias, descriminalização das drogas e fim da “guerra às drogas” – termo comumente usado por políticos de esquerda para defender a redução de operações policiais de enfrentamento ao narcotráfico.
O texto chega a apontar o modelo das forças armadas e das polícias militares brasileiras como obstáculo aos direitos humanos e cita que há “profunda incompatibilidade entre as polícias militares e qualquer arremedo de regime democrático” para, em seguida, defender a desmilitarização das forças de segurança.
Algumas das demais proposições aprovadas no encontro, que poderiam compor eventual nova edição do PNDH, são:
- “Desarmar o país” por meio de uma “campanha massiva anti-armas” e uma “política radical de redução do número de armas circulando no país”;
- “rever toda a arquitetura de segurança pública do país”;
- atuar na educação com “propaganda massiva de valores democráticos, pluralistas” para “enfrentar o neofascismo”;
- Criar uma espécie de tribunal para processar e punir os responsáveis pelo “genocídio” durante a pandemia da Covid-19;
- Criar marco legal dos direitos da população LGBT
Outras medidas presentes no documento, a exemplo da criação de novos ministérios como Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humanos, já foram sinalizadas por Lula. No aspecto financeiro, o setorial defende, sem maiores detalhamentos, que o orçamento para direitos humanos será “enormemente ampliado”.
Em meio a críticas ao teor das propostas durante a campanha eleitoral, o PT decidiu apagar do seu site a página que contém tais sugestões. Além disso, passou a direcionar o link da página com o conteúdo excluído para um site do PT que se propõe a combater “fake news” contra o partido. Apesar disso, ainda é possível acessar as resoluções do encontro nacional de direitos humanos da legenda por este link.
Sem força de lei, PNDH-4 teria função principal de orientar atuação do governo
Conforme explica Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP,em regra os decretos presidenciais funcionam como um detalhamento de medidas em relação a uma lei aprovada, mas existem situações em que é permitido ao governo federal emitir decreto sem a necessidade de haver uma lei que o embase.
Nesses casos, em que se encontra a figura do PNDH, trata-se do chamado Decreto Autônomo. Como não possui força de lei, na prática o programa atua principalmente como uma diretriz para orientar os ministérios do governo federal a atuarem de acordo com a visão implementada no documento.
“O que se pode dizer é que embora a última edição do PNDH declare uma grande quantidade de medidas e intenções, a efetiva implementação disso dependeria de leis a serem aprovadas no Legislativo. O programa é mais uma declaração de intenções do que realmente uma norma que provocará mudanças efetivas”, explica o doutor em Direito Constitucional.