Mesmo sem ter pesquisas científicas que comprovem a segurança e a eficácia da fosfoetanolamina, a presidente Dilma Rousseff sancionou sem vetos a lei que autoriza o uso da substância, chamada “pílula do câncer”. O ato gerou reclamações de entidades médicas e foi desaprovado pela Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão responsável pelo registro de medicamentos no país.
A lei informa que poderão fazer uso da fosfoetanolamina pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, desde que comprovem o diagnóstico por meio de um laudo médico e assinem um termo de consentimento. O texto ainda acrescenta que a opção pelo uso da substância “não exclui o direito de acesso a outras modalidades terapêuticas”. A decisão em utilizar a droga também precisa ser de livre escolha do paciente.
Anvisa: lei que autoriza uso da “pílula do câncer” pode colocar população em risco
Leia a matéria completaNo entanto, a lei não especifica como as pessoas podem ter acesso à fosfoetanolamina. Sancionado na quarta-feira (13) e publicado no Diário Oficial da União na quinta (14), o texto apenas aborda que produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou uso da “pílula do câncer” ficam permitidos “independentemente de registro sanitário, em caráter excepcional, enquanto estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância”.
Também não há detalhes de quem poderá produzir a substância ou como ela poderá ser comercializada. A lei apenas determina que tais atos são permitidos “para agentes regularmente autorizados e licenciados pela autoridade sanitária competente”. Com isso, os laboratórios que se interessarem pela produção da substância podem ter de buscar uma espécie de permissão da Anvisa.
Riscos
A agência não se manifestou sobre como será essa permissão ou como a substância poderá entrar no mercado, mas emitiu uma nota se posicionando contra a aprovação da lei. No documento, o órgão reiterou “sua profunda preocupação em relação à lei”, por liberar a fosfoetanolamina sem “estudos clínicos capazes de comprovar sua eficácia e segurança” e sem que a substância tenha registro na Anvisa, “como todos os medicamentos em uso no país”. A agência acrescentou que a exceção “abre perigoso precedente porque afronta o sistema regulatório em vigor, que foi estabelecido pelo próprio Congresso Nacional, e pode trazer riscos sanitários importantes para nossa população”.
A Anvisa ainda acrescentou que jamais foi protocolada “qualquer solicitação de registro dessa substância, ou sequer de autorização, para realizar os ensaios clínicos que são internacionalmente considerados obrigatórios para todos os novos medicamentos”. O diretor-presidente do órgão, o médico sanitarista Jarbas Barbosa, afirmou que a agência vai estudar juridicamente manobras capazes de fazer com que o dano à saúde das pessoas seja minimizado.
“Agora, com essa lei, poderá ser comercializada e distribuída uma substância que não estará sujeita à fiscalização sanitária. Quem vai garantir que o que tem dentro da cápsula é mesmo fosfoetanolamina, na quantidade que está escrita na caixa? Quem vai impedir que sejam falsificadas e produzidas, por pessoas inescrupulosas, cápsulas com farinha colocadas em uma caixa que diga que é fosfoetanolamina? Vai ter bula?”, questionou Barbosa.
O repúdio das entidades médicas
Sociedades médicas, oncologistas e pesquisadores se manifestaram contra a aprovação da lei. Por meio de nota, a Sociedade Brasileira de Cancerologia afirmou que não pode “apoiar a legalidade de algo que não apresenta valor médico”. A entidade ressaltou que “defende o debate às problemáticas em torno do combate ao câncer no país, sem oportunismos”.
Já o presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, Gustavo dos Santos Fernandes, afirmou que é “uma lástima” o governo ter aprovado a substância sem comprovação científica.
Diretor do Grupo Brasileiro de Tumores Gastrointestinais, o oncologista Gabriel Prolla afirma que a aprovação da lei pelo Executivo é uma incongruência, já que o próprio governo destinou uma verba para estudar a substância. Seriam necessários, no mínimo, dois anos de pesquisa para testar a segurança da “pílula do câncer” no combate à doença, conforme o médico.
Substância não foi incorporada ao SUS
Apesar da contrariedade da Anvisa, de três ministérios (Saúde, Ciência e Desenvolvimento) e da Advocacia-Geral da União, a Casa Civil recomendou que Dilma aprovasse a lei, que passou em uma votação relâmpago no Congresso em março. A posição seria uma tentativa de evitar desgaste e perda de votos às vésperas da votação do impeachment.
Após a sanção da lei, o Ministério da Saúde afirmou que “está participando da discussão da elaboração de regulamentação para o uso, pesquisa e fornecimento do medicamento”. O órgão também esclareceu que os pacientes interessados no uso da fosfoetanolamina terão de arcar com todos os custos, já que a substância ainda não foi incorporada ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Conforme a pasta, os estabelecimentos fornecedores da “pílula do câncer” deverão manter um balanço específico com a movimentação da substância. Para a incorporação ao SUS, segundo a nota, seria necessária uma avaliação por parte da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), responsável por análises baseadas em evidências e que levariam em consideração aspectos como eficácia, efetividade e a segurança da tecnologia.
Passos
Para que uma droga seja aprovada como remédio para uso humano, são necessárias várias etapas, que podem se prolongar por mais de uma década
Fase pré-clínica
Experimentos em laboratório
Em um primeiro momento, a nova droga é testada em laboratório, por meio da interação com células cancerígenas. Nesta fase, muitas moléculas apresentam propriedades promissoras. No entanto, estima-se que, para cada 5 mil a 10 mil substâncias analisadas, só uma vai vencer as fases seguintes de pesquisa e efetivamente ter efeito como medicação. Segundo o oncologista André Fay, pesquisador do Dana-Farber Cancer Institute, só essa etapa laboratorial foi realizada no caso da fosfoetanolamina
Modelos animais
As substâncias que apresentam bons resultados nos testes com culturas de células são testadas, na etapa seguinte, em animais com tumores.
Fase clínica
Primeira fase
Se há sucesso com animais, a droga pode começar a ser testada em pessoas. Em geral, cinco substâncias, de cada 5 mil a 10 mil descobertas, chegam nesta fase. Ela consiste em analisar se a droga é tolerada pelo organismo, se oferece segurança, em que doses pode ser administrada. Os testes são feitos com 20 a cem voluntários.
Segunda fase
Quando já se conhecem as doses seguras e os perfis de toxicidade, avalia-se a efetividade da substância em pacientes humanos. Também se confirmam quais as doses mais adequadas. Os voluntários são entre cem e 500.
Terceira fase
A droga é testada em um grupo maior de pacientes, para que se possa avaliar seus resultados em comparação com os tratamentos já existentes. Nessa etapa, de 1 mil a 5 mil pacientes participam.
Depois da aprovação
Aprovada a medicação, o tratamento passa a ser oferecido a uma quantidade ampla de pacientes e monitora-se o seu funcionamento. Até esse momento, podem ter transcorrido duas décadas, com custos que chegam a US$ 3 bilhões.
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