O haitiano Octame Jeff, de 20 anos, chegou na noite desta terça-feira do Acre, em um dos seis ônibus fretados pelo governo acriano que chegaram a São Paulo desde domingo (17), trazendo outros 240 compatriotas em busca de emprego e melhor oportunidade de vida na maior cidade da América Latina. Jeff chegou gripado, com dor de garganta e febre, mas ainda não teve atendimento médico. Nem uma aspirina. Ele está abrigado em condições precárias no salão da Igreja Nossa Senhora da Paz, no Glicério, centro de São Paulo, conhecida por receber imigrantes de todo continente americano e africano. O local só tem capacidade para abrigar 60 imigrantes em condições dignas. O restante se espreme no salão, todos amontoados no chão. Ali se passa frio à noite, todos dormem em colchonetes no chão, só têm uma refeição por dia (jantar) e têm enorme dificuldades para irem ao banheiro ou tomar banho (só há um banheiro para 110 pessoas). Já são 260 haitianos em dois salões da igreja.

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Imigrante haitiana enfrenta roubo na travessia para o Brasil

Vil Wildrene juntou um ano de salário de seu emprego no país natal. Na travessia, feita por “coiotes” peruanos, foi roubada por aqueles que pagou para lhe ajudar

“Só rezem por mim”, pediu a haitiana Vil Wildrene aos pais quando deixou o Haiti, em abril. Desempregada, a mulher de 35 anos partiria dali para uma viagem de um mês em busca de prosperidade no Brasil. Deixava para trás a filha Fabienka, de 11. “Todos eles ficaram orgulhosos quando eu disse que faria a viagem. O Brasil é muito bem visto no Haiti”, contou.

Juntou, entre empréstimo no banco e ajuda de parentes, U$ 3,5 mil. O valor equivale a mais de um ano de salário de seu último emprego, como camareira de um hotel. Nas mãos, apenas uma maleta de roupas, uma sacola amarela com documentos pessoais e uma blusa de frio. Era o suficiente para fazer a travessia, que incluía passagens pela República Dominicana, Equador e Peru.

Como não tinha visto, Vil optou por passar em um trajeto ilegal, operado por “coiotes”. Vil contou que na fronteira entre o Peru e o Equador, andou por cinco horas em um grupo de 15 imigrantes - cinco delas, mulheres. No caminho, todo percorrido durante a noite para evitar a polícia, tinham apenas água e biscoitos para consumir. Ela disse que cada um precisou pagar US$ 100 aos coiotes, todos peruanos, para atravessar Huaquillas, na divisa com o Peru.

O desespero começaria no meio do caminho: foi roubada pelos próprios condutores da travessia ilegal. “Levaram a minha roupa e a maior parte do dinheiro.” De tudo que carregava, ficou apenas com a roupa do corpo - um par de tênis azuis, blusa decotada, jaqueta e uma calça jeans - e uma sacola de plástico amarela, onde guardava o valor das passagens de ônibus. “Não sabia o que fazer. Pensei em voltar, mas já não teria dinheiro. Decidi ir até o fim”, explicou.

Os últimos cinco dias de viagem até o Brasil não registraram outros problemas. Quando chegou a Cuzco, no Peru, ficou em um quarto de hotel pago por colegas que também atravessaram Huaquillas. Para chegar até Rio Branco (AC), foi de ônibus.

Já em São Paulo desde a segunda-feira, 18, Vil quer aprender português. As aulas são oferecidas pela Missão Paz gratuitamente, por voluntários. Apesar de não conhecer ninguém na capital, ela esteve desde o primeiro dia na cidade na fila do abrigo para fazer entrevistas de emprego. “Quero algum trabalho em que eu tenha onde dormir, porque ouvi dizer que o aluguel está muito caro”, disse.

A um mês longe de casa, ainda não conseguiu contatar ninguém da família. Mas diz sonhar com a filha Fabienka todos os dias. “Quero juntar dinheiro para devolver o que minha família emprestou para que eu viesse. E para dar uma vida melhor para a minha filha, quem sabe trazer ela pra cá.” Mas, por enquanto, o olhar aos desconhecidos à sua volta descreve a incerteza do que virá. “Vim atrás de uma vida nova, de um mundo novo. Mas, por enquanto, só sei que estou aqui e bem.”

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Antes de chegar a São Paulo, Jeff ficou 15 dias no Acre. Para chegar ao Acre, foi uma maratona. Foi do Haiti ao Peru de ônibus e teve que pagar US$ 400 para poder atravessar a fronteira. No Peru, ladrões lhe roubaram os US$ 200 que tinha na carteira. Chegou ao Acre sem dinheiro. Apesar de ter o visto humanitário, não conseguiu emprego e lhe disseram que se fosse para São Paulo seria mais fácil arrumar um trabalho. Está abrigado na Igreja Nossa Senhora da Paz, onde não espera ficar muito tempo.

“As condições aqui são muito difíceis. A gente passa frio e fome. Espero arrumar emprego logo e alugar uma moradia”, disse Jeff, que não fala português e conta com a ajuda da igreja para poder arrumar trabalho. Os empregadores vão à igreja todas terças e quintas-feiras em busca de mão de obra.

Segundo o padre Paolo Parisi, da Igreja Nossa Senhora da Paz, as condições de abrigo aos haitianos são emergenciais e precárias.

“Já falei com o prefeito Haddad (Fernando) e com o Ministério da Justiça para que o governo do Acre pare de mandar mais haitianos para São Paulo. Não temos como atender em condições dignas mais gente. Hoje (quarta-feira) à tarde estará aqui o secretário de Direitos Humanos da Prefeitura, Eduardo Suplicy, para que discutamos o problema e encontremos uma solução para esse elevado fluxo de imigração. A prefeitura chegou a montar um abrigo, mas ele está lotado não só se haitianos, mas de congoleses e até sírios. Há muita gente imigrando do mundo inteiro em busca de refúgio no Brasil”, disse o padre Parisi.

O prefeito Fernando Haddad disse que fará o melhor possível para atender todos os refugiados, mas criticou a falta de comunicação com o governo do Acre, que desta vez não lhe informou com antecedência de que enviaria os ônibus com os haitianos. O Ministério da Justiça, que destinou R$ 1 milhão para o governo do Acre coordenar a distribuição dos haitianos pelo Brasil, já mandou o governador Tião Viana (PT) interromper as viagens dos ônibus carregados com os refugiados do Haiti para São Paulo. Estava previsto o despacho de outros 968 haitianos do Acre para São Paulo nos próximos dias. O padre Parisi teme que alguns desses ônibus já tenham partido de Boa Vista e pelo menos dois deles cheguem a São Paulo na noite desta quarta-feira.

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Enquanto as autoridades não se entendem, os haitianos tentam sobreviver no Brasil. Antes desta leva que deixou o Acre no domingo, outros movimentos imigratórios aconteceram. No ano passado, houve um pico de remessa de hatianos para São Paulo em abril. Depois o ciclo se interrompeu em função do bate-boca entre o prefeito Haddad e o governador Viana. Desde outubro, outros ônibus chegaram, mas só agora em volume muito intenso.

O haitiano John Thompson, de 25 anos, está no Brasil desde 2011. Ficou um ano em Manaus e depois se mudou para São Paulo. Em Manaus ganhava apenas R$ 700 por mês e com isso não conseguia sobreveviver e mandar dinheiro para a família no Haiti. Por isso, mudou-se para São Paulo, onde trabalhou como ajudante na construção civil, ganhando R$ 1.100, mas a crise no setor o deixou desempregado há seis meses.

“Precisei ir morar na igreja do Glicério, onde estou desde 27 de fevereiro. Aqui não tem almoço. Só jantar, servida às 20h. E às vezes é pão com suco. A gente dorme no chão, não tem cobertor e faz muito frio”.

Seu amigo Chrispain Saintelmy, de 34 anos, já está abrigado na igreja há três meses. “Só tem um banheiro para os homens e um para as mulheres. De manhã a fila para ir ao banheiro é enorme. Tomar banho é difícil. E o pior é que dizem que nesta noite chegarão mais dois ônibus com 90 pessoas”.

Pierre Amos Lamaelle, de 25 anos, chegou do Acre há um mês e está abrigado na igreja à espera de conseguir um emprego. “Pode ser qualquer coisa. Preciso trabalhar e pode deixar o abrigo na igreja, que é muito difícil. Comida só uma refeição por dia. Não tem café da manhã, não tem nada. É difícil ir ao banheiro, tomar banho”, disse Pierre.

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“Me disseram que o Brasil era o paraíso, mas desde que aqui cheguei minha vida se transformou num inferno - diz o haitiano Fegens Cherisca, 35 anos. Ele quer voltar para o Haiti, onde deixou três filhos e mulher. - As condições lá são complicadas, mas pelo menos é minha pátria”, explicou Cherisca.

Outro que está desolado com a situação que vive no Brasil é Mussetti Pasteo, de 26 anos. Formado em jornalismo no Haiti, ele reclama não ter a oportunidade de trabalhar no setor de comunicação no Brasil. “Tenho que ficar arrumando trabalho como ajudante de eletricista, para ganhar R$ 900 por mês. Para pagar minhas contas aqui e mandar dinheiro para minha filha no Haiti. Já estou um ano assim em São Paulo e estou achando melhor voltar para o Haiti. Pelo menos lá poderia exercer minha profissão de jornalista”, disse Mussetti.

O padre Parisi reconhece a precariedade do atendimento aos haitianos, mas acha que deixá-los na rua seria muito pior. Ele entende que o problema é que os haitianos vem para o Brasil porque dizem a eles que há muitos empregos aqui, esquecendo de dizer que já enfrentamos problemas com a crise econômica.

“A situação só não está pior porque muitos dos haitianos que deixaram o Acre foram diretos para outros mercados, como Santa Catarina. Em Chapecó, onde há uma indústria muito forte no setor de abate de frangos, já são cinco mil haitianos”, informa o padre Parisi.