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Uma ação que propõe permitir o aborto em casos de infecção por zika vírus será julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no próximo dia 24. O tema entrou na pauta do tribunal de forma inesperada, já que não constava na agenda do primeiro semestre de 2020, divulgada pelo ministro Dias Toffoli, presidente da Corte, no fim do ano passado.
A ação é de 2016 e foi levada ao STF pela Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep), que alega que a criminalização do aborto em mulheres infectadas pelo zika vírus é “uma verdadeira afronta aos preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana” e “da liberdade (autodeterminação pessoal e autonomia reprodutiva)”. A Anadep pede que seja declarada “constitucional a interrupção da gestação de mulher que tiver sido infectada pelo vírus zika e optar pela mencionada medida”.
Em 2019, a ação foi incluída na pauta do STF duas vezes, mas foi retirada por pressão de grupos de defesa da vida. O aborto não é punido no Brasil em três situações: em casos de risco de morte para a mulher gestante, de estupro ou de anencefalia do bebê. A terceira possibilidade foi aberta pelo STF em 2012.
Para o advogado e deputado federal Enrico Misasi (PV-SP), que também é membro da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família da Câmara, abrir essa quarta possibilidade é “um tremendo erro, como política pública, como valor humano de uma sociedade que se queira inclusiva, protetora dos mais vulneráveis, protetora dos mais frágeis”. “É consagrar constitucionalmente, numa decisão da mais alta corte do país, um princípio de que nem todas as vidas têm o mesmo valor”, afirma.
Diagnóstico de zika na gestante já seria suficiente para aborto
A ação é polêmica não só por ferir o princípio de que todas as pessoas têm igual dignidade, mas também por propor que o mero diagnóstico de zika vírus na mulher seja suficiente para o aborto. “Você estaria permitindo o aborto diante de uma possibilidade de uma má formação ou de uma limitação física do feto. Não é nem de uma certeza, é de uma possibilidade”, observa Misasi.
O risco de que a criança tenha microcefalia, segundo os proponentes da ação, já bastaria para justificar o aborto. “Transforma um risco num fato. O risco de a criança ter problema virou o fato”, afirma Antonio Jorge Pereira Júnior, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
Pereira ressalta que “ainda que fosse um fato, se realmente ficasse com alguma anomalia”, uma decisão favorável a permitir esse tipo de aborto geraria “aquela pré-seletividade eugênica que é própria dos sistemas totalitários”.
Para o professor, a argumentação da ação é “insidiosa” e se reveste da “máscara da tutela dos direitos humanos das mulheres”.
A aprovação pelo STF, segundo ele, poria em xeque a evolução do Direito, pela qual a lei do mais forte deixa de prevalecer na sociedade.
“O mundo foi evoluindo ao longo do tempo exatamente para a tutela do mais frágil, do mais vulnerável, do mais deficiente. Isso estaria exatamente autorizando que se possa matar, por antecipado, alguém que o seja, que sequer se tem certeza de que o seja”, afirma.
Pereira acrescenta que, se uma criança nasce com microcefalia, o Estado “tem que dar para ela o aparato que possa viabilizar que tenha a vida melhor possível, e não, ao contrário, tirar a vida dela”. Ele salienta que a criança com microcefalia não está fadada à morte precoce. Cita o exemplo de uma jovem que nasceu com a doença e, aos 24 anos, formou-se em Jornalismo no Mato Grosso do Sul.
Momento escolhido chama a atenção
O professor considera que o contexto do agendamento parece estratégico e sugere a intenção de dificultar uma mobilização social. Para ele, o STF já vinha apresentando, nos últimos anos, tendência favorável à permissão do aborto, mas o momento escolhido para pautar este tema o surpreendeu.
“O que mais me chamou a atenção no caso desta ação não foi nem tanto o objeto dela, mas, de certa forma, o aproveitamento do contexto de uma pandemia, em que está todo o mundo isolado, sem poder se manifestar”, diz.
Pelo nível de interesse público que a ação envolve, diz Pereira, ela deveria ser julgada num contexto em que as pessoas, entidades e autoridades tivessem mais liberdade para se manifestar e tomar atitudes em relação ao julgamento.
“Parece uma atitude estratégica, que inibe, de certa forma, uma atitude de reação”, diz. “É grotesco no argumento. E é grotesco no contexto de se permitir que ele venha a ser julgado quando a sociedade não pode participar do debate”, acrescenta o professor.
Enrico Misasi considera o momento escolhido “muito despropositado”. “O timing é muito ruim, porque é um momento em que precisamos de unidade de todos os poderes para enfrentar um inimigo comum, que é o coronavírus. Precisa de uma boa relação entre parlamento e Supremo”, afirma.
Além da possível desarmonia entre poderes, Misasi destaca a relevância moral do caso, que justifica mais cautela na escolha do momento para pautar a matéria. “Não dá para você discutir um tema moral tão relevante, tão sensível, que divide tanto o país, num momento em que a gente precisa se unir. Por isso eu acho muito, muito inoportuno”, diz o deputado.
Mobilização social e do parlamento pode ajudar a evitar
Antonio Jorge Pereira Júnior diz que a sociedade pode recorrer aos meios de comunicação digitais para tentar convencer os ministros a mudarem a agenda. “Mandar várias mensagens para os ministros e pedir a parada imediata disso. Fazer chegar até eles que não é para fazer isso agora”, sugere.
Para o professor, é necessário comunicar aos ministros “o escândalo que causa julgar essa situação neste momento, pelo contexto que a gente está vivendo agora”. “É curioso, porque é um contexto em que a gente está querendo salvar vidas, por causa do vírus, e agora alguém vai querer autorizar a matar vidas por causa de outro vírus? É até um contrassenso dentro das circunstâncias”, diz.
Misasi afirma que que alguns parlamentares já estão conversando sobre o tema. “Acho que a gente deveria trabalhar para que isso fosse tirado de pauta. A gente está conversando com os deputados, para ver qual é a melhor atitude a se tomar”, comenta.