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O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na sexta-feira (10), que o decreto do presidente Lula (PT) do dia 1º de janeiro, que trouxe diversas restrições relacionadas ao acesso a armas e munições no país, deve continuar vigorando. A decisão, que ocorreu em julgamento virtual, impede que juízes de todo o país avaliem denúncias de ilegalidades no decreto, suspende todos os processos em curso que contestavam as novas regras impostas por Lula e anula a eficácia de decisões judiciais que já haviam sido tomadas em relação ao decreto.
Ao todo, nove ministros acompanharam na íntegra o voto do relator, Gilmar Mendes, no sentido de blindar o decreto de Lula. Kassio Nunes Marques acompanhou o relator com ressalvas, enquanto André Mendonça foi o único a divergir do entendimento de Gilmar Mendes.
Há diversos questionamentos na Justiça quanto à constitucionalidade do decreto que, dentre outras medidas, suspende a concessão de novos certificados de registro para a categoria dos Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs); restringe a quantidade de armas e munições que podem ser registradas por pessoa; e suspende o registro de novos clubes e escolas de tiro. Além disso, a norma proíbe o Exército de autorizar novas aquisições de armas e ordena que sejam interrompidos os processos de aquisição que estavam em andamento. Como mostrado pela Gazeta do Povo, a determinação do governo tem ocasionado consequências diversas, que vão da inviabilização da prática do tiro esportivo no país até danos econômicos, como demissões e fechamento de empresas do setor.
No dia 15 de fevereiro, um dia antes de Gilmar Mendes conceder liminar suspendendo processos que questionassem o decreto de Lula, um juiz de Umuarama (PR) havia autorizado que um CAC paranaense, autor da ação, fosse dispensado do recadastramento de suas armas de fogo no sistema da Polícia Federal (PF). A determinação de que armas já cadastradas adequadamente no sistema do Exército devem ser recadastradas, desta vez na PF – em alguns casos sendo preciso levar as armas até as delegacias – veio de uma portaria do governo federal editada em 1º de fevereiro baseada no decreto de Lula publicado em janeiro.
Em paralelo, nas instâncias superiores do Judiciário, já foram protocolados diversos pedidos de suspensão do decreto. Ao todo, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no STF há seis mandados de segurança, além de uma ação direta de inconstitucionalidade contra a norma – todas, a partir de agora, serão suspensas.
“Ideologia suplantou a técnica jurídica”, diz especialista em segurança pública
Parte dos ministros da Suprema Corte tem se manifestado pessoalmente, sobretudo a partir do ano passado, contra a flexibilização do acesso a armas de fogo, que foi uma marca do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O próprio relator, Gilmar Mendes, disse pelo Twitter em novembro do ano passado que a “crescente cultura de ódio no país” é “fomentada por políticas infundadas de armamento”. Em junho de 2020, o ministro já havia sugerido, sem apresentar dados, uma relação entre o maior número de armas legais nas mãos da população ao aumento da violência e a uma suposta elevação no número de homicídios.
Pelo contrário: de 2018 para cá, período em que houve aumento significativo no acesso a armas legais no Brasil, os homicídios tiveram queda expressiva. O número de homicídios verificado em 2021 (47,5 mil), por exemplo, foi o menor em dez anos. Em 2017, ápice da violência no país, haviam sido contabilizadas 64 mil mortes violentas. Apesar de não haver estudos que façam correlação direta entre a política pró-armas e a diminuição de mortes violentas, os números denotam que a flexibilização do acesso a armamento não contribuiu para o aumento de homicídios.
Fabrício Rebelo, pesquisador em segurança pública e fundador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), avalia que ministros do STF têm tratado a questão das armas de fogo sob um prisma prioritariamente ideológico, “fortemente contaminado pela narrativa falaciosa de entidades desarmamentistas, e não com um enfoque estritamente técnico e, sobretudo, constitucional”.
“O decreto tem ilegalidades e inconstitucionalidades manifestas, flagrantes até, violando claramente a obrigação constitucional do Estado de fomentar o esporte e subvertendo o que diz o próprio Estatuto do Desarmamento, especialmente quanto aos requisitos para se comprar uma arma e os órgãos de controle, com a absurda transferência de uma competência legal do Exército para a Polícia Federal”, aponta Rebelo.
“Isso, como esperado, gerou uma série de contestações judiciais, e o que o Supremo agora fez foi dizer que só ele poderá decidir acerca dessa questão, e que todos os questionamentos devem ser suspensos. Na prática, é a convalidação das ilegalidades e inconstitucionalidades contidas no decreto”, enfatiza.
Outro ponto questionado pelo pesquisador é que o Tribunal ainda não entrou no mérito dos questionamentos contra o decreto, e mesmo assim Gilmar Mendes antecipou seu entendimento de que a norma é regular. “No fundo, é mais um exemplo de como, nesse campo, a ideologia vem suplantando a técnica jurídica”, lamenta.
Gilmar Mendes evoca ataques de 8 de janeiro e critica decretos de Bolsonaro sobre armas
O ministro-relator iniciou seu voto mencionando os ataques aos prédios dos Três Poderes e citando que os atos foram “abertamente patrocinados por grupos armamentistas”. Na análise do decreto, o ministro diz que não considera qualquer inconstitucionalidade e que a norma “encontra-se em consonância com os últimos pronunciamentos deste Supremo Tribunal Federal acerca da matéria de fundo”.
Na sequência, o magistrado faz críticas à política de Bolsonaro, de maior flexibilização no acesso a armas e munições. “Em suma, observou-se clara atuação inconstitucional no sentido da facilitação do acesso a armas e munições no País, beneficiando especialmente a categoria dos CACs”.
No voto, Mendes também destaca que o decreto é temporário, uma vez que seus efeitos se dariam até que o grupo de trabalho que atualmente está em funcionamento para criar nova regulamentação para o Estatuto do Desarmamento encerre suas atividades. Por fim, o ministro reforça manifestação favorável ao conteúdo do decreto de Lula e argumenta que eventual desconsideração a essa norma “agravaria ainda mais o quadro inconstitucional de efetivo descontrole da circulação de armas de fogo no Brasil”.
Nunes Marques acompanha relator, mas contraria visão de Gilmar Mendes sobre armamento
Apesar de acompanhar o relator no sentido de que o decreto do governo seria constitucional, o ministro Kassio Nunes Marques fez uma série de ressalvas à visão expressada por Gilmar Mendes em seu voto quanto à políticas de flexibilização do acesso a armas legais.
Nunes Marques enfatizou várias vezes ao longo do voto que é precipitado relacionar o aumento de armas legais nas mãos da população ao aumento da violência, citando levantamentos do próprio Executivo que mostram que, ao passo que decretos de flexibilização ao armamento foram sendo implementados no país, os homicídios entraram em tendência de queda.
“Se não é possível afirmar, com certeza, que a maior disponibilização de armas tenha reduzido as ocorrências de homicídios, é possível dizer que esse aumento exponencial do total de armas por habitante não gerou aumento da violência ou de assassinatos. Ora, se os dados alusivos à aquisição de armas cresceram 349,2%, houve, por outro lado, redução de mais de 30% no número de homicídios. Isso, a meu ver, afasta o alegado risco iminente”, afirma o ministro.
Nunes Marques destaca, ainda, a importância de o Judiciário respeitar o referendo realizado em 2005, durante o primeiro mandato de Lula como presidente da República, que consultou a população sobre eventual proibição do comércio de armas e munição no Brasil. Na ocasião, a maioria dos votos (64% dos eleitores, ou seja, 59 milhões de brasileiros) se manifestaram contra tal proibição.
“Essa foi uma das votações mais expressivas de toda a democracia brasileira (...). Portanto, creio que, se, em 2005, quase 65% dos cidadãos brasileiros votaram por manter a possibilidade de adquirir armas de fogo, tal vontade deve ser observada”.
Para André Mendonça, que divergiu dos demais ministros, decisão afronta competências do STF
André Mendonça foi o único ministro a votar contra a declaração de constitucionalidade do decreto do governo Lula sob a justificativa de que há jurisprudência no Supremo para que ações desse tipo sejam precedidas da existência de uma “controvérsia judicial relevante”. Segundo o ministro, a análise deveria ocorrer apenas se houvesse “divergência interpretativa entre os órgãos do Poder Judiciário quanto à constitucionalidade de determinado ato normativo federal”.
Como há poucas ações em andamento, e nenhuma decisão apontou inconstitucionalidade do decreto em questão, não caberia a análise do pedido pelo STF. “Vale dizer: a meu sentir, admitir a ADC (...) transformaria, aí sim, inegavelmente, a referida ação em um instrumento de controle prévio e consultivo de constitucionalidade das leis, em afronta às competências constitucionalmente atribuídas ao Supremo Tribunal Federal”, declarou Mendonça.