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STF: De guardião da Constituição a guardião da verdade?

Fachada do STF
Fachada do STF. (Foto: Dorivan Marinho / STF)

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Vivemos em tempos estranhos. Achávamos que o STF fosse apenas o guardião da Constituição, o que, por si só, já não é pouco. Aliás, se, nos últimos anos, sua atuação restringisse em bem desempenhar essa nobre tarefa – no que andou faltando, a julgar, pelo menos, à luz do ativismo judicial reinante e do desfile de decisões que reescreveram o texto do poder constituinte originário – o STF estaria a atender ao comando constitucional.

Contudo, parece que os ares palacianos suprimiram o pouco do senso comum que ali havia e, agora, além de ser guardião da Constituição, o STF avocou a função de guardião da verdade. Isso mesmo. A partir da edição da Resolução 742/21, foi o criado o “Programa de Combate à Desinformação” para combater conteúdos que – na visão “aleteica” da Corte – possam ser tipificados como "desinformação e narrativas odiosas" direcionados à Corte e aos ministros do STF, a ser “gerenciado por um Comitê Gestor”.

Numa realidade em que as expressões "Big Brother", "polícia das ideias", "duplipensar", "pensamento-crime" e "novilíngua", infelizmente, tornaram-se corriqueiras, a tal resolução tem o inegável mérito de inovar, ao introduzir, digamos, o que com ela, na realidade, pretende-se: o papel de gestor da verdade ou, na hermenêutica orwelliana, a instituição do Ministério da Verdade.

Pronto. Agora, creio que já podemos incorporar o enredo de 1984 por completo. Resta apenas aguardar pelo final da trama, embora o “inquérito do fim do mundo” já tenha dado passos firmes nesse sentido, como bem ressalvou, por ocasião da decisão do plenário da corte, a lucidez do ministro Marco Aurélio.

Sabemos que uma árdua tarefa, em toda sociedade democrática, está em aquilatar, ao mesmo tempo, a liberdade de expressão e a proibição da discriminação, ainda que fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, porque envolve a verdade prática a ser buscada aqui e agora nessa historicidade localizada. Nesse particular, tolerar a desinformação ou a narrativa odiosa – como, aliás, muitas a que assistimos ultimamente contra o STF –, por mais risíveis que sejam seus lastros teóricos, não significa concordar com elas ou aprová-las.

Permitir a livre expressão de opiniões antidemocráticas, xenófobas, nacionalistas, racistas, revisionistas, odiosas ou falsas não implica em estar de acordo com seus protagonistas e nem mesmo em dialogar com eles, quanto mais em conceder o reconhecimento público que esperam.

Assegurar um acesso ao debate público é, no fundo, repudiar a intolerância intelectual, de molde, inclusive, a respeitar a vida intelectiva do homem, faculdade operativa antropológica que justamente nos diferencia de todo o mundo dos seres vivos e que, somado à nossa condição de criatura imago Dei, fundamenta, ontologicamente, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Uma sociedade sadia deve se legitimar no debate público. Admitir-se que qualquer ideia possa ser veiculada livremente é, no fundo, fazer com que os membros dessa sociedade aprendam a discernir, deliberar e formular um juízo prudencial de valor sobre as ideias que merecem ser vivenciadas na práxis social em prol do bem comum, descartando ou tentando aprimorar – no teatro social e não na canetada de um burocrata do Ministério da Verdade – aquelas que possam atentar contra isso.

Então, aqui, temos um ponto crucial na busca da verdade prática a ser buscada no seio social: a relação entre verdade e liberdade. A liberdade está associada a uma certa medida, isto é, a medida da realidade que, por sua vez, em termos tomistas, corresponde à medida da verdade.

Então, para buscarmos a verdade das ideias que se refletem na práxis social, suprimir a narrativa odiosa ou a desinformação é impedir que a liberdade atue eficazmente nesse sentido. Todavia, não ficamos só nisso, porque tal eliminação pressupõe um certo despotismo judicial ilustrado: a corte incorpora uma função deliberativa daquilo que acredita ser a verdade prática historicamente situada e, em casos mais patológicos, pode vir a professar um messianismo político-social, porque crê estar antevendo, por um juízo estritamente particular, aquilo que é próprio da deliberação social, onde o juízo prudencial final é formado por um fecundo e maior entrechoque das opiniões de seus atores.

Nesse sentido, tal despotismo passa a impor sua interpretação sob o manto de uma decisão administrativa, mas esse manto é diáfano e, por isso, podemos observar, a partir da carência da intermediação de um processo deliberativo social, toda sua fragilidade intrínseca e, por mais ilustrados que sejam seus fundamentos ou as cabeças que componham o tal Ministério da Verdade, continua-se a cortejar com o despotismo na forma de pensar e decidir.

Por isso, a proteção preferencial pela liberdade de expressão – vinculada à liberdade de pensamento, conformadora da opinião pública livre e condição do pluralismo como valor do ordenamento jurídico – convida-nos a excluir a possibilidade de sancionar os discursos nocivos ou desinformativos pela via da pura e simples gestão do Ministério da Verdade.

Dessa forma, numa sociedade aberta, evita-se que qualquer ideia, por mais insustentável que nos pareça num primeiro olhar intuitivo, possa ser rejeitada pela caneta inquisitorial do gestor de plantão, só pelo fato de ser considerado um discurso de ódio ou uma desinformação, supostamente apto a colocar em risco as mais elementares demandas públicas de ordem institucional no STF.

O perigo não está tanto no reconhecimento da objetividade da verdade, mas nos excessos de convencimento subjetivo dos membros do Ministério da Verdade sobre a possibilidade de captá-la, algo que os leva a descartar, de antemão, uma humilde e prudente falibilidade.

As exigências de racionalidade prática dos meios adequados para se fazer prevalecer a verdade prática, longe de destruir seus fundamentos, acabam por se apoiar em fundamentos éticos, mormente no postulado de que a tolerância exige propor a verdade prática e renunciar sua imposição pura e simples, sem que isso demande de cada um de nós, sequer remotamente, a obrigação de negar essa mesma verdade, afirmá-la ou de ignorá-la, tornando-se desnecessárias as medidas, por parte do Ministério da Verdade, de “alfabetização midiática” e fortalecimento da imagem (artigo 2º, inciso II, da Resolução 742/21).

Aliás, acerca dessas ações, podemos apostar que esse tal “Mobral dos Jornalistas” tenderá ao mesmo insucesso da versão raiz do regime militar e, se o STF pretende um legítimo fortalecimento de sua imagem, basta revogar essa resolução e começar a fazer o feijão com arroz – como guardião da Constituição –, porque o que me preocupa, como cidadão, não são tantas as notícias falsas sobre a corte, mas, paradoxalmente, as verdadeiras: censura à Revista Crusoé; busca e apreensão de bens, fundada numa discutível ameaça, em casa de general; influência na ação que resultou na desmonetização de canais no YouTube; proibição de uso de redes sociais por jornalistas não engajados; afastamento de fiscais da Receita Federal que investigavam familiares de ministros da corte; expedição de mandado de constatação em escritório do ex-PGR com base num fato penal atípico; o já mencionado inquérito do fim do mundo e, agora, a presente resolução administrativa.

A Constituição, que nos é apresentada como a verdade jurídico-política dessa sociedade em que vivemos aqui e agora, é, por definição, suscetível de desenvolvimentos institucionais políticos e legislativos muito diversos, desde que respeitem seu conteúdo diretivo ou principiológico.

Este peculiar modo de conhecimento da realidade convida-nos, prudentemente, a uma busca compartilhada da verdade prática e não a uma proposta de imposição do autoritarismo da subjetividade togada pela palavra e pela pena do Ministério da Verdade. Evitamos, desta maneira, a “tolerância repressiva” de Marcuse: ou você concorda comigo ou você é um desinformante odioso.

Não se trata de fabricar um consenso, entendido como uma espécie de substitutivo de uns princípios objetivos com os quais não poderíamos contar para iluminar uma realidade material, mas, antes, de encontrar, fecundamente, o sentido objetivo de uma exigência prática, ajudando-nos conjuntamente a desvelá-la. Por sinal, a colegialidade típica das cortes constitucionais não deixa de responder, mais de uma vez, a esta mesma dinâmica, a qual, no caso da edição da Resolução 742/21, andou a faltar. Por fim, espero, sinceramente, que, logo amanhã cedo, a Polícia Federal não bata aqui em casa. A patroa não irá gostar e, caso volte no mesmo dia para o lar, serei apenado a dormir na sala de estar.

* André Gonçalves Fernandes, post Ph.D., é professor-coordenador de Filosofia e Metodologia do Direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra (Espanha).

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