Após oito anos de debates acalorados que envolveram a comunidade médica, jurídica e religiosa, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar hoje a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sobre a realização de aborto em caso de fetos anencéfalos. A ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) em 2004 é bastante emblemática, pois coloca em discussão dois pontos que estão longe de ser unanimidade: o direito à vida do feto com malformação encefálica e o direito da mulher de optar por levar uma gravidez adiante ou não, mesmo sabendo que a criança pode viver por poucos instantes após o nascimento.
Hoje, de acordo com o Código Penal brasileiro, o aborto não é punido apenas em duas situações: quando a gravidez for resultado de estupro ou quando houver risco à vida da mãe. Mulheres que desejem interromper a gravidez de feto anencéfalo precisam recorrer à Justiça, cuja decisão pode levar meses (veja quadro ao lado).
Votos
O resultado do julgamento é imprevisível, já que a maioria dos ministros ainda não se manifestou sobre o tema. O que se sabe é que o relator da ação, ministro Marco Aurélio Mello, deve votar a favor da interrupção da gravidez nesses casos, pois já concedeu liminar a pedido de gestante para realizar o aborto de feto que apresentava malformação congênita. Também se espera que o ministro Antonio Dias Toffoli se declare impedido tendo em vista que na época em que era advogado-geral da União apresentou parecer favorável à interrupção da gravidez nesses casos.
O ministro Carlos Ayres Britto declarou apenas que o julgamento será um "divisor de águas no plano da opinião pública." Para ele, o julgamento da ação será rico em reflexões e intuições. "Ele é divisor de águas no plano da opinião pública, repercute muito no campo da religiosidade, da saúde pública", disse Ayres Britto.
O jurista Ives Gandra Martins, doutor honoris causa na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e diretor-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo, afirma que essa é uma questão eminentemente jurídica e que apresenta três pontos cruciais. "Consideramos que o Supremo não tem competência para isso, porque é criação de nova hipótese de impunidade para o aborto, e só o Congresso Nacional pode legislar."
Além disso, segundo ele, o art. 2.º do Código Civil declara que os direitos do nascituro são assegurados desde a concepção. "Seria um absurdo dizer que menos o direito à vida seria assegurado. Se as pessoas considerarem que esse direito só é assegurado após o nascimento, então o Código Civil é inconstitucional. E ele foi feito por ministros do Supremo."
Segundo ele, há ainda uma outra razão jurídica para não se permitir a interrupção da gravidez nem mesmo nesses casos, que é o fato de o Brasil ser signatário do Pacto de San José da Costa Rica, que preserva a vida desde a concepção.
Já para a consultora jurídica especializada em Direito Médico da Saúde e membro da Comissão de Direito da Saúde da OAB-SP Sandra Franco, a negativa do STF a essa ação representaria um adiamento de uma decisão que tem de ocorrer para acompanhar a realidade da evolução da medicina e das mulheres na sociedade.