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Em fevereiro, Gilmar Mendes votou no sentido de que o Estado deve provar que não é culpado por cada uma das mortes durante operações policiais
Em fevereiro, Gilmar Mendes votou no sentido de que o Estado deve provar que não é culpado por cada uma das mortes durante operações policiais| Foto: Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) retomará o julgamento, na tarde desta terça-feira (7), que decidirá se o Estado do Rio de Janeiro deve ser responsabilizado pela morte de um homem vítima de disparo de arma de fogo durante um tiroteio entre traficantes, policiais e militares do Exército na comunidade de Manguinhos, em 2015.

A perícia técnica apontou que a origem do disparo que vitimou o rapaz é inconclusiva, ou seja, não foram identificadas provas da participação de agentes públicos na morte, havendo a possibilidade de o tiro ter sido disparado pelos próprios narcotraficantes. No entanto, a família da vítima pede que o Estado seja obrigado a indenizar mesmo sem haver comprovação do envolvimento de policiais ou militares.

No julgamento, que foi suspenso em 7 de fevereiro, três dos cinco ministros que compõem a Segunda Turma já haviam se manifestado sobre o recurso contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Kassio Nunes Marques, o relator do caso, negou o pedido de responsabilização do Estado, enquanto Gilmar Mendes votou no sentido de que o Estado deve provar que não é culpado por cada uma das mortes durante operações, gerando a indenização no caso específico.

Já Edson Fachin sugeriu que o julgamento fosse suspenso até que o Plenário julgasse o Tema 1.237, com repercussão geral, do qual deriva o recurso em questão. Nesse julgamento, que ainda não tem data prevista, os ministros se manifestarão de forma ampla – sobrepondo o caso em questão – sobre haver ou não responsabilidade estatal por morte durante operações nos casos em que a perícia técnica não consegue descobrir a origem do disparo. O Tema determinará o entendimento amplo a ser aplicado por todo o Judiciário a casos desse tipo no país.

Entenda o caso

No caso específico do rapaz morto em 2015, o TJ-RJ havia negado, em 2021, a possibilidade de o Estado indenizar a vítima sem comprovação de que o tiro partiu da arma de policiais. Na primeira instância, a decisão havia sido semelhante.

A família da vítima recorreu ao STF e, em maio de 2022, o relator Nunes Marques negou provimento ao recurso alegando que há entendimento por parte do Supremo de que a presença de nexo de causalidade – isto é, a existência de algum vínculo entre a conduta do agente e o resultado danoso – é condição para estabelecer a responsabilidade objetiva do Estado em casos desse tipo.

Familiares da vítima, então, entraram com um agravo regimental, que é o recurso para questionar decisões tomadas individualmente por um ministro. Com isso, o caso foi levado a Plenário virtual, em agosto do ano passado, para apreciação de todos os membros da Corte. O ministro Edson Fachin, no entanto, pediu vista retirando o processo de julgamento.

Em fevereiro deste ano, o caso foi levado à Segunda Turma do STF, composta por Nunes Marques, Fachin, Mendes, Ricardo Lewandowski e André Mendonça. O relator votou mantendo o entendimento de que não há justificativa para indenização vinda do Estado.

Em seu voto, Nunes Marques mencionou trecho da decisão do TJ-RJ sobre o caso, que destacou impactos à segurança pública de uma decisão no sentido de gerar indenizações sem provas de envolvimento de policiais nas mortes. Segundo o Tribunal fluminense, “inexistindo conteúdo probatório de que o tiro que atingiu a vítima haja efetivamente partido da arma de fogo de um dos policiais, afasta-se um dos elementos essenciais para a caracterização do dever de indenizar, sendo certo, por outro lado, que, entender-se de forma contrária para impor ao Estado responsabilidade por qualquer infortúnio culminaria por inibir toda e qualquer atividade de repressão à criminalidade pelas forças de segurança pública”.

Gilmar Mendes, por outro lado, votou de forma contrária, no sentido de que o Estado deve provar que não é culpado por cada uma das mortes durante operações. O ministro afirmou que “as operações policiais no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, são desproporcionalmente letais e sem controle” e que sempre que houver morte ou lesões, cabe ao Estado demonstrar que a operação foi legal e que o dano não ocorreu por sua culpa. “O Estado fere e mata diariamente seus cidadãos, especialmente em comunidades carentes. A definição da responsabilidade civil do Estado não pode desconsiderar esse aspecto”, declarou.

Após o voto, o relator Nunes Marques decidiu reagendar o julgamento do caso para a sessão da Segunda Turma desta terça-feira.

Julgamento pode ser postergado novamente

Vale reforçar que o entendimento dos ministros sobre o processo está restrito ao caso específico ocorrido no Rio de Janeiro. O que estenderá a visão da Corte sobre o tema para o Judiciário de todo o país é o julgamento do Tema 1.237, a ser analisado por todos os membros do STF e ainda sem data para ir a Plenário.

Na avaliação de José Roberto Mello Porto, doutor em Direito Processual e defensor público do Rio de Janeiro, é correto o entendimento de Fachin ao pedir a suspensão da análise sobre o recurso até que o STF julgue o Tema com repercussão geral para, posteriormente, aplicar o entendimento sobre o recurso.

“Repercussão geral significa que é uma questão que extrapola o caso concreto. Os ministros vão fixar uma tese que vai obrigar todos os juízes do país a seguirem esse entendimento. Quando há um recurso extraordinário com repercussão geral, o STF primeiro deve definir a questão em abstrato para só depois julgar aquele recurso extraordinário concretamente”, explica Mello Porto, que aponta ser possível que o julgamento do recurso seja suspenso pelo relator e aguarde a análise ampla do Plenário.

Impactos de eventual responsabilização do Estado mesmo sem provas de culpa de policiais

Na prática, uma eventual decisão da Corte de seguir a linha de raciocínio de Gilmar Mendes obrigaria o Estado a demonstrar claramente a culpa de um criminoso específico quanto a uma ou mais mortes em operações, o que nem sempre é possível em especial se tratando de conflitos armados que ocorrem nos morros do Rio de Janeiro, dominados pelo crime organizado.

“Nessas circunstâncias é muito comum que vários criminosos participem do tiroteio, e vários deles consigam fugir. Somente alguns serão presos, o que eventualmente também não permite uma investigação mais apurada que chegue à autoria dos disparos”, explica Adriano Klafke, especialista em segurança pública e Direito Constitucional.

Sobre as mortes nos confrontos entre policiais e traficantes, ele destaca uma diferença significativa no modo de combate entre ambos. Enquanto o policial via de regra faz disparos parado, com cadência controlada e com alvos específicos em vista, o comportamento padrão entre traficantes é atirar sem visualização de alvos e fazendo inúmeros disparos descontrolados ao lado de paredes e por cima de muros. Tal conduta aumenta consideravelmente a possibilidade de que criminosos acertem moradores.

Klafke destaca que se a Corte aprovar uma medida como essa haverá impactos diretos à segurança pública em vários estados, sobretudo pelo desencorajamento de policiais à ação. Para isso, ele aponta dois aspectos – o primeiro é a possibilidade de que o Estado promova ações de regresso contra policiais para obter o reembolso dos valores pagos como indenização.

O segundo ponto tem a ver com efeitos da “condenação moral” da atuação da polícia a partir de um entendimento como o expressado por Gilmar Mendes. “Isso é um desestímulo enorme. A mensagem que se passa aos policiais é de que eles estão permanentemente errados, e sempre os criminosos têm uma vantagem de apoio, inclusive moral”, diz.

“Se fizermos um paralelo com outras medidas, como a que determinou que operações policiais no Rio de Janeiro só podem ocorrer em situações excepcionais, urgentes e previamente justificadas, isso vai no sentido de criar uma forte tranquilidade para os criminosos”, diz o especialista em segurança pública.

“Estamos num contexto em que a polícia está sendo presumida como culpada. Há uma presunção de ilegalidade na ação policial, quando na verdade deveríamos ter uma presunção de legitimidade, salvo se investigações demonstrarem o contrário, que os policiais agiram por culpa ou dolo, e que disso veio algum resultado danoso a quem quer que seja”, prossegue.

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