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Uma possível manipulação do sistema de distribuição de processos no STF facilitaria que interesses externos influenciassem decisões.
Uma possível manipulação do sistema de distribuição de processos no STF facilitaria que interesses externos influenciassem decisões.| Foto: Antonio Augusto/STF

Dois acontecimentos recentes trouxeram à tona questionamentos sobre como funciona o mecanismo que escolhe qual ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) deve ficar responsável por uma ação. O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, barrou uma auditoria externa no sistema de distribuição de processos do STF, marcada para setembro. No mesmo mês, o ministro Dias Toffoli negou uma ação do Partido Progressista (PP) que contestava a escolha de Alexandre de Moraes para a relatoria de processo de investigação do coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Bolsonaro. 

O sigilo sobre esse sistema de sorteio no STF chama a atenção. Caso fosse provada a manipulação na escolha de relatorias de processos – em que ministros pudessem escolher as ações que vão relatar – haveria uma violação do direito dos cidadãos de julgamento justo e imparcial, previsto na Constituição. Por isso, juristas apontam que a falta de transparência no sistema de distribuição de processos na Corte pode representar um grave risco à democracia brasileira. 

Recuo de Barroso fere princípio da transparência, avaliam juristas

Inicialmente, Barroso havia aprovado o pedido do portal UOL para que uma equipe de especialistas em tecnologia verificasse o funcionamento do sistema de distribuições de processos no STF. Após todo o trâmite administrativo e a 72 horas para a data combinada, Barroso suspendeu a auditoria. O motivo do recuo seria porque a ação poderia expor o sistema a ataques de hackers.

Está previsto que o sistema do STF realize um sorteio para definir qual ministro será responsável por processos que chegam à Corte, assim como todos os tribunais no país. O princípio constitucional da transparência exigiria que a Corte estivesse aberta a explicar como isso funciona, ao ser questionada.

“A distribuição transparente evita que juízes sejam escolhidos para julgar casos de pessoas específicas. Evita o uso do direito como instrumento de vingança, não de justiça”, destaca André Marsiglia, advogado especialista em liberdade de expressão. Ele ressalta que a falta de transparência no processo de distribuição pode beneficiar ou prejudicar indivíduos, especialmente se o juiz encarregado já tiver opiniões pré-concebidas sobre o réu ou suas convicções.

Para Marsiglia, está claro que "a proteção de dados e a privacidade são importantes, mas não mais do que a transparência ao acesso das informações de interesse público à sociedade". O advogado ainda pondera que, caso haja manipulação do sorteio e distribuição de processos a juízes, o princípio constitucional do juiz natural estaria sendo violado.

Moraes tem assumido uma série de inquéritos sem sorteio

O princípio do juiz natural tenta assegurar que os cidadãos tenham seus casos julgados por um juiz imparcial, determinado por sorteio. A indicação direta de um juiz poderia abrir espaço para que essa escolha atendesse a conveniências políticas. Dessa forma, aumentariam o risco de interesses externos interferirem nas decisões judiciais, violando o direito a um julgamento justo.

Com base em questionamentos semelhantes, o Partido Progressista (PP) apresentou uma ADPF no STF, em março deste ano. Entre as várias alegações de ilegalidades feitas pelo partido, uma das principais é a designação do ministro Alexandre de Moraes como relator da PET 10.405. Essa ação investiga a suposta fraude de cartões de vacina cometida pelo Coronel Mauro Cid, ex-assessor de Bolsonaro. O partido argumenta que essa investigação teria origem no Inquérito das Milícias Digitais.

Moraes assumiu a relatoria do caso com base na alegação de que a possível fraude estaria conectada não apenas ao Inquérito das Milícias Digitais, mas também ao Inquérito das Fake News. Como ambos estavam sob sua responsabilidade, o ministro acabou ficando também com a relatoria da petição envolvendo Mauro Cid.

“O que estamos vendo é que todo tipo de fato que envolva o mandato anterior da presidência da República, servidores e eventuais apoiadores, está sendo conectado inicialmente com o famoso Inquérito das Fake News”, aponta Bruno Gimenes, advogado e mestre em ciência jurídica pela UENP. Ele destaca que essa conexão tem levado à concentração desses casos nas mãos do ministro Alexandre de Moraes, sem sorteio para a avaliação de outro ministro.

Gimenes exemplifica: “uma eventual fraude no cartão de vacina praticada por Mauro Cid estaria linkada a uma concepção transcendente de mentiras praticadas pelo governo anterior sobre vacinas. E, se tratando de mentiras, elas devem ser investigadas, por conexão, ao inquérito inicial das Fake News”. Segundo o advogado, o STF estaria utilizando uma argumentação forçada para manter esses casos sob sua jurisdição, e, principalmente, sob o mesmo gabinete.

Toffoli alega que Moraes poderia ser acionado para decidir sobre sua própria relatoria

O inquérito das Fake News, aberto para investigar "fake news" e "ataques" contra ministros do STF, foi aberto em 2019 após o uso de uma estratégia inusitada. O então presidente do STF, Dias Toffoli, usou uma regra do regimento interno, o artigo 43, que permite à Corte a abertura de inquéritos em caso de ataques às dependências físicas do tribunal. O ministro ampliou a interpretação do artigo 43 incluindo a possibilidade de o STF investigar críticas à Corte feitas em qualquer espaço (incluindo a internet), o que não está previsto na Constituição e nem segue o devido processo legal.

No início do inquérito, Toffoli designou o ministro Alexandre de Moraes como relator do caso, sem realizar o sorteio tradicional. Os primeiros alvos do inquérito foram o portal O Antagonista e a revista Crusoé, após publicarem uma reportagem que envolvia Toffoli. Outros inquéritos foram abertos, também designados a Moraes, com novos investigados, como, o canal Terça Livre, comandado por Allan dos Santos, o jornalista Oswaldo Eustáquio, entre outros. Diversos jornalistas, parlamentares e influenciadores, especialmente de direita, também sofreram censura no âmbito desses inquéritos. Pela sua extensão e tempo de duração sem conclusões (aberto há mais de cinco anos), o inquérito das fake news passou a ser chamado de “Inquérito do Fim do Mundo” por Marco Aurélio Mello, ministro aposentado da Corte.

O mesmo ministro Toffoli, responsável pela abertura do inquérito das Fake News e alvo da reportagem do Antagonista e da Crusoé, foi responsável por julgar a ADPF do PP, que solicitava a anulação das decisões tomadas por Alexandre de Moraes na ação contra Mauro Cid. Dias Toffoli rejeitou o pedido, afirmando que a ADPF era uma tentativa indevida de recurso e que o STF já havia explicitamente rechaçado esse tipo de contestação.

Na visão de Toffoli, a possibilidade de questionar a relatoria e os atos de Moraes sempre existiu por meio de outros mecanismos processuais, como a apresentação de um mandado de segurança, caso houvesse indícios de ilegalidade. O que o ministro não explicita é que o julgador desses recursos seria o próprio Moraes.

“Uma das alegações do PP é de que não se sabe nem o que de fato está acontecendo dentro do processo, então, como recorrer? Só há acesso a decisões externas como mandados de busca e apreensão, prisões e censuras”, afirma Bruno Gimenes. Ele acrescenta que, devido ao sigilo dos processos e ao esgotamento de prazos para recursos, seria praticamente impossível para o partido contestar as decisões de forma eficaz.

“Essas interpretações do STF aumentam, convenientemente, o poder do STF sobre esses processos e acaba, de certa forma, possibilitando que o próprio Supremo controle o resultado último do processo”, conclui Gimenes.

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