STF vai definir se municípios podem proibir a produção do foie gra| Foto: Bigstock
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Nos primeiros dias de vida, o ganso, ou o pato, é criado solto, comendo ração a base de milho. Então a situação muda. As aves passam a ser confinadas em locais com iluminação artificial 24 horas por dia, sete dias por semana, para que fiquem mais tempo acordadas e comendo. A quantidade de ração aumenta. Para garantir que elas se alimentem, é muito comum utilizar a técnica conhecida como gavagem, que consiste num tubo que segue por dentro do sistema digestivo, até alcançar o estômago.

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Depois de um prazo que varia de dez dias a um mês submetido a esse tratamento, o animal está pronto para o abate. Seu fígado cresceu 12 vezes e atingiu mais de 60% do peso total da ave. O órgão será extraído e utilizado para produzir o foie gras, nome em francês que significa “fígado gordo”. Considerado uma iguaria sofisticada, na textura e no sabor, o alimento pode ser consumido frio ou quente, em diferentes pratos, desde petiscos até pratos principais – o mais conhecido é o patê de foie gras.

Nos últimos anos, a utilização da gavagem motivou uma série de reações, inclusive no Brasil, onde diferentes municípios, incluindo São Paulo, Florianópolis e Blumenau aprovaram leis proibindo a produção e a comercialização do alimento. Agora o Supremo Tribunal Federal (STF) vai decidir se leis municipais têm autonomia legal para lidar com essa questão, ou se ela demanda uma legislação de âmbito nacional.

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O caso chegou ao STF depois que a lei municipal 16.222/2015, sancionada pela prefeitura paulista, foi julgada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que considerou que um município não pode proibir a comercialização de um produto. Nos Estados Unidos, debate semelhante foi iniciado pela Califórnia, em 2012, quando entrou em vigor uma lei proibindo a comercialização de foie gras. A medida foi cassada em 2015 e validada por recurso em 2017. Até que a Suprema Corte decidiu que o estado americano tem, sim, o direito de barrar a produção e a venda de um insumo.

No último dia 6 de março, o STF reconheceu que a decisão sobre o caso terá repercussão geral.

| Foto: Bigstock

Dois lados

Do ponto de vista das entidades defensoras dos direitos dos animais, não há dúvidas: a alimentação forçada é motivo suficiente para restringir a produção do foie gras. Um manifesto divulgado em 2015, quando da aprovação da lei municipal de São Paulo, argumenta que a maior parte da população é contrária à prática, ainda que os ricos queiram se aproveitar dela em seus pratos caros - um quilo de foie gras chega a custar R$ 300.

“Pedimos que vocês escutem a sociedade: mesmo que alguns consumidores ainda queiram consumir patê de fígado de animais submetidos a alimentação forçada, a maioria absoluta das pessoas acha que essa prática é simplesmente errada e inaceitável”, afirma o texto, assinado pela apresentadora Luisa Mell, pelo secretário-executivo da Sociedade Vegetariana Brasileira, Guilherme Carvalho, por Lilian Rockenbach, coordenadora do Movimento Crueldade Nunca Mais, e Sônia Fonseca, presidente do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal.

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“Para elas, isso não é mais uma questão meramente pessoal”, prossegue o manifesto; “é uma questão ética, uma questão de respeito básico. Esse imenso contingente de cidadãos entende que as pessoas não podem fazer o que quiserem com os animais – mesmo que haja consumidores dispostos a pagar por isso”. O texto argumenta: “O foie gras é um ícone da crueldade contra os animais ditos ‘de consumo’ e, como tal, não tem mais lugar na nossa sociedade”.

Por outro lado, os defensores da iguaria argumentam que os animais são muito mais bem tratados antes do abate do que o frango de granja, ou o gado de corte. “Eu sempre brinco que gostaria de ser um daqueles patos”, argumenta o chef Julien Mercier. “Eles são muito bem tratados, bem alimentados, circulam em liberdade, e a técnica da gavagem é aplicada da forma menos invasiva possível”.

Ao menos, diz ele, essa é a forma como o foie gras artesanal é produzido, especialmente na França. “As pessoas veem vídeos de internet em que as aves são muito maltratadas. Aquilo é terrível, mas acontece principalmente no Leste Europeu, onde a exploração industrial dos animais é cruel e, além disso, gera um foie gras de menor qualidade”. Na França, a produção da iguaria é considerada patrimônio nacional.

Técnica milenar

O fígado de aves como gansos, patos e marrecos é tratado como iguaria desde o Antigo Egito. Há 4500 anos, as aves já eram alimentadas com grande quantidade de alimentos gordurosos, de forma a ampliar o fígado. Diferentes usos do foie gras foram registrados na Grécia Antiga e em Roma. Por sua vez, a técnica de gavagem, utilizada nos animais há séculos, era comum, até muito recentemente, em prisões, quando detentos faziam greve de fome e eram alimentados à força, com tubos inseridos pela garganta – muitas mulheres sufragistas da Inglaterra da década de 1910 registraram a agressão, que até recentemente era praticada na prisão de Guantánamo.

O que os defensores dos direitos animais defendem é que essa prática seja extinta, em respeito ao bem-estar das aves. Para Julien Mercier, existem outras questões mais graves, e que não são devidamente endereçadas. “O frango de granja, que quase todos os brasileiros consomem, não vê a luz do sol desde que nasce. Ele não conhece luz natural e, ao fim da vida, está tão gordo, por efeito de alimentação e de hormônios, que suas coxas não sustentam seu corpo”, alega. “Se isso não é crueldade, eu não sei o que é”.

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De toda forma, o STF não vai decidir pela proibição ou não do foie gras em território nacional. Mas, se autorizar os municípios a barrar a produção e a comercialização, é possível que a decisão abra um precedente para que outras cidades tomem a mesma medida de São Paulo, Blumenau e Florianópolis.