A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem até o final de maio para regulamentar como será feita a concessão de autorização para o plantio, cultivo e comercialização da Cannabis sativa por indústrias, em sua versão não psicotrópica, o cânhamo. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou a medida no último dia 13, para fins medicinais e farmacêuticos. Apesar dessa restrição, especialistas acreditam que a decisão pode ser um passo significativo rumo à legalização do cultivo de outros tipos de Cannabis, como a maconha, com alto teor psicoativo, para fins comerciais, inclusive recreativos.
A decisão foi tomada pela Primeira Seção do STJ, responsável por questões de direito público, como regulamentações e tributos. Segundo os ministros, a Lei de Drogas não proíbe o cânhamo industrial, já que ele possui o teor de tetrahidrocanabidiol (THC) inferior a 0,3%. É o TCH o responsável pelos efeitos psicoativos gerados pela maconha e, quanto maior o teor, mais efeitos psicoativos são gerados durante o uso.
A ministra Regina Helena Costa, relatora do caso, afirmou que o cânhamo e a maconha são variedades distintas da Cannabis sativa. De acordo com ela, enquanto a maconha possui elementos com propriedades psicoativas, o cânhamo não, o que não traria riscos para a população. Ambas são provenientes da mesma família de planta (Cannabis sativa), mas para a produção do cânhamo são usadas fibra, semente e flor e da maconha apenas a flor.
Especialistas, no entanto, discordam que a decisão seja inofensiva. “Essa decisão do STJ é como uma porta aberta para possíveis pretensões futuras do lobby da Cannabis. Foi assim nos Estados Unidos e em alguns países da Europa: começaram pelo cânhamo, que tem menor potencial de THC”, afirma Roberto Lasserre, advogado e coordenador nacional do Movimento Brasil sem Drogas. Segundo ele, essa é decisão é “uma janela para que o lobby da Cannabis alcance uma futura legalização para o uso recreativo”.
Dificuldades de fiscalização do Brasil pode abrir brechas para uso de maconha pelo tráfico
Outra preocupação levantada por Lasserre é a capacidade das autoridades brasileiras de fiscalizar o uso adequado do cânhamo, o que poderia facilitar o acesso de traficantes à planta para fins que não fossem medicinais.
Sem um controle eficiente e com plantas tão semelhantes, que dificulta a distinção entre o cânhamo para o uso medicinal e a Cannabis sativa com alto teor de THC, há um risco significativo de que áreas autorizadas para cultivo sejam desviadas para a produção de maconha voltada ao uso ilícito, ampliando o acesso à droga no mercado ilegal.
“O Brasil não fiscaliza hoje nem a gasolina que a gente coloca no carro, que pode ser adulterada. Não há controle efetivo sobre a venda de bebida alcoólica para crianças, ou seja, para menores de 18 anos. O Brasil não fiscaliza hoje, infelizmente, a questão de cigarros eletrônicos. Quem disse que o Brasil poderá fiscalizar plantações de cânhamo?”, questiona.
A psiquiatra Ana Rita Dias Resende reforça a preocupação com a facilitação de plantações clandestinas de maconha e o aumento do consumo entre jovens, que tem ocorrido em idades cada vez mais precoces. Segundo ela, mesmo com regulamentações rigorosas, existe o risco de medidas como essa beneficiarem o tráfico de drogas. “A liberação para que se produzam produtos para fins farmacêuticos de Cannabis suscita preocupações quanto à fiscalização eficaz e ao potencial aumento da exploração comercial. Prevejo que a indústria farmacêutica e o tráfico se beneficiarão desta medida”, alerta.
STJ assumiu função do Legislativo e pressiona o Executivo
No julgamento, os ministros do STJ definiram que a Lei de Drogas (Lei 11.343 de 2006), quando proíbe o plantio de vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, não se refere a plantas como o cânhamo, com baixo teor de THC. Essa decisão, no entanto, invade a função do Poder Legislativo, responsável por legislar sobre o plantio dos diversos tipos de Cannabis e sua fiscalização.
No Congresso Nacional, já tramitam diversos projetos sobre o tema. Entre as mais avançadas, no Senado Federal acontece a discussão do projeto de lei (SUG 6/2016), que propõe a regulamentação da maconha medicinal e do cânhamo. A origem da proposta foi por iniciativa popular, mas em 2019 o plenário da Casa a transformou em projeto de lei do Senado. Posteriormente, não houve avanços.
Já na Câmara dos Deputados, o PL 399/2015, que viabiliza a comercialização de medicamentos que contenham Cannabis sativa, está entre os projetos de lei que mais receberam destaque nos últimos anos. Contudo, o projeto está parado desde novembro de 2021. O motivo é que a proposta enfrenta resistência significativa, com grande parte dos deputados federais contrários à medida e a falta de apoio legislativo necessário para avançar.
No julgamento, os magistrados do STJ reconheceram ainda que é função do Poder Executivo formular políticas públicas relacionadas ao manejo e controle das variedades de Cannabis. Ao mesmo tempo, no entanto, ordenaram o Estado brasileiro a apresentar, em seis meses, um plano de regulamentação para o uso industrial do cânhamo.
Judiciário amplia permissões para o uso de maconha
Essa não é a primeira vez que o Poder Judiciário toma uma decisão de grande impacto relacionado à Cannabis e que pode ter repercussão no acesso à maconha. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) descriminalizou o porte da maconha até 40 gramas para consumo pessoal. Os ministros da Corte entenderam que o porte de maconha não deve ser tratado como uma infração penal, mas apenas como uma infração de natureza administrativa.
A Gazeta do Povo já mostrou como o número de decisões judiciais favoráveis à plantação doméstica de maconha cresceu, inclusive por parte do STJ. A permissão para cultivo de maconha em casa é controversa, especialmente por não considerar devidamente os riscos de dependência e intoxicação pelo uso das propriedades da planta.
“A legalização da maconha pode torná-la mais acessível, mas o problema fundamental está na percepção de que seu consumo não acarreta prejuízos significativos, sob o argumento de ser ‘medicinal’”, considera Ana Rita Dias Resende. Segundo a médica, “este discurso, amplamente difundido, não é respaldado por evidências científicas robustas para a maioria das condições clínicas”.
A psiquiatra alerta que o consumo de maconha, especialmente entre jovens de 12 a 15 anos, pode gerar sérios prejuízos cognitivos, aumentar o risco de transtornos psiquiátricos e dificultar tratamentos medicamentosos. “É essencial considerar esses riscos ao discutir políticas públicas sobre o uso da maconha”, enfatiza.
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