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Violência doméstica

STJ enfraquece Lei Maria da Penha

Ameaçada pelo ex-companheiro, Clara (nome fictício) teme que o processo contra ele também seja suspenso | Celso Margraf/Gazeta do Povo
Ameaçada pelo ex-companheiro, Clara (nome fictício) teme que o processo contra ele também seja suspenso (Foto: Celso Margraf/Gazeta do Povo)

Ponta Grossa - Uma decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deverá mudar o entendimento em relação à Lei Maria da Penha, em vigor há quatro anos no país. Os ministros do STJ decidiram que um homem que tentou sufocar a companheira tem direito à suspensão condicional do processo pelo fato de a pena prevista para o crime ser inferior a um ano de prisão. A decisão que poderá ser estendida para casos com penas semelhantes no Brasil. Para entidades de combate à violência contra a mulher, a medida é um retrocesso. Já juristas avaliam que a possibilidade de reabertura do processo bastará para intimidar os agressores.

A Lei 11.340, batizada de Maria da Penha em homenagem à farmacêutica que ficou paraplégica depois que seu ex-marido tentou matá-la, tirou os casos de violência doméstica dos Juizados Especiais e os levou para as varas criminais. As penas ficaram mais rígidas e a proteção às vítimas foi estendida. No entendimento do STJ, a suspensão não afeta a lei e mantém o cunho educativo da norma, ao estabelecer que o processo será reaberto em caso de reincidência.

Essa é a avaliação do professor de processo penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Jacinto Coutinho, para quem a decisão do STJ é coerente. Ele lembra que a possibilidade da reabertura do processo, caso a vítima volte a ser perseguida, pode inibir o agressor. "Parece-me que a sociedade está assentada na ideia de gozo pela punição. O que é mais importante: punir a pessoa ou evitar que a agressão volte a acontecer?", questiona. Ele diz que não atende clientes acusados desse tipo de crime quando está advogando, mas considera necessário ser "racional" diante do entendimento da lei.

A promotora do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (a única do Paraná e com sede em Curitiba), Cláudia Cristina Martins, considera a suspensão "uma resposta estatal mais branda", mas avalia que a possibilidade de reabertura do processo "tem caráter repressivo e educativo". "Tem-se que os cidadãos, sabendo que a resposta penal virá, sensibilizar-se-ão e deixarão de praticar atos que possam ser considerados crimes", resume.

Para Ana Teresa Iamarino, coordenadora geral de Acesso à Justiça e Combate à Violência contra a Mulher da Secretaria de Políticas para as Mulheres, do governo federal, a decisão do STJ é um retrocesso. "A medida está equivocada, não considera todo o fenômeno da violência doméstica e trata a situação como um crime eventual", diz. Ana Claudia Perei­ra, consultora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, do Distrito Federal, tem a mesma opinião. "A sociedade é muito machista e isso não isenta os poderes constituídos, em todos os órgãos encontramos decisões que não respeitam os direitos das mulheres."

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dos 278.871 processos abertos nos quatro anos de vigência da lei, 3.203 foram suspensos por motivos diversos.

"Sei do risco que estou correndo", diz ameaçada

Clara (nome fictício) tem 45 anos e é aposentada por invalidez. Mora em Ponta Grossa, na região dos Campos Gerais, em uma modesta casa de madeira alugada, com um filho adolescente e vários cães e gatos que pegou para criar. Sentiu que precisava de uma companhia e começou a namorar o pintor João (nome fictício), oito anos mais novo. Ele parecia uma boa pessoa, até Clara perceber que seu comportamento se alterava com o consumo de bebida alcoólica. Logo descobriu que ele era ex-presidiário e respondia em liberdade pelo crime de assalto a mão armada.

João não aceitou o rompimento e começou a fazer ameaças e danificar os móveis da casa. "Ele nunca saiu no tapa comigo, mas quebrou fogão e geladeira e ameaçou a mim e ao meu filho", diz Clara. Mesmo com medo de represálias, ela registrou dois boletins de ocorrência na Delegacia da Mulher.

O pedido de afastamento do lar feito pela delegacia demorou 20 dias para sair da vara criminal. "Acho isso um absurdo. Como alguém que denunciou a pessoa vai ficar morando embaixo do mesmo teto dela? É como deixar o cão cuidando do gato", avalia. João assinou a ordem de afastamento, mas voltou para casa quando o oficial de Justiça virou as costas.

A medida lhe custou a liberdade. João foi preso por descumprimento da ordem judicial e ainda vai responder pelos crimes de danos, ameaça e perturbação de sossego. Como ele ainda não foi julgado, não se sabe se poderá ser beneficiado com a suspensão do processo. Clara tem uma certeza: "Eu sei do risco que estou correndo", afirma. "Denunciei ele, mas não vou me mudar daqui. Quem foge uma vez foge sempre." Ela diz que só conseguiu voltar a dormir quando o ex-companheiro foi preso. "Coisa que há muito tempo eu não fazia", afirma.

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