Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) - confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro de 2022 - determinou que o jornalista Rubens Valente pague R$ 310 mil ao ministro Gilmar Mendes, do STF. A quantia se deve a “danos morais” pela publicação do livro Operação Banqueiro, em que o jornalista relata os bastidores da Operação Satiagraha, da Polícia Federal (PF). A operação, deflagrada em 2008, foi responsável pela prisão de aproximadamente 20 pessoas acusadas de crimes como lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, evasão de divisas e formação de quadrilha.
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Em 2008, quando ocupava a presidência do STF, Gilmar Mendes derrubou duas vezes os mandados de prisão contra o empresário Daniel Dantas, um dos principais indiciados na investigação. Três anos depois, o STJ decidiu anular toda a operação, incluindo a condenação de Dantas.
Em um capítulo do seu livro, Rubens Valente faz menção a Gilmar Mendes e narra casos polêmicos do ministro, como confrontos com o Ministério Público, com a PF e com os próprios colegas do Supremo; relações com advogados que tinham entre os clientes o banco Opportunity, do qual Daniel Dantas é fundador, dentre outros.
Durante um ano, o jornalista tentou, sem sucesso, agendar entrevista com Gilmar Mendes, para que o ministro pudesse dar a sua versão dos fatos. Após a publicação do livro, Mendes decidiu processar Valente sob a alegação de que o relato jornalístico foi uma “distorção” de sua biografia.
Em decisão de 1ª instância, o juiz Valter André de Lima Bueno Araújo entendeu que não havia informações falsas ou intuito difamatório no livro e absolveu o jornalista. Gilmar Mendes recorreu ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que decidiu reverter a sentença e condenar Rubens Valente a uma indenização de R$ 30 mil. Já o STJ foi além: aumentou o valor da indenização para R$ 310 mil e ordenou que, numa eventual reedição do livro, fosse incluída toda a petição inicial de Gilmar Mendes, assim como a sentença condenatória na íntegra. A inusitada determinação inviabiliza uma nova edição da obra, que ganharia cerca de 200 páginas a mais e teria seu custo significativamente inflado.
Em agosto de 2021, a Primeira Turma do STF decidiu, por unanimidade, seguir o voto do ministro Alexandre de Moraes e ratificar a decisão, para a qual não cabe mais recurso.
A decisão foi considerada uma ameaça à liberdade de imprensa pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). “A Abraji considera a decisão do STF contra Rubens Valente um precedente perigoso para o regime legal e constitucional da liberdade de expressão no Brasil, porque impõe um dever de indenização muito grave para o exercício da liberdade de imprensa, sobretudo quando não se verifica nenhum abuso por parte do profissional. Sem mencionar os efeitos da autocensura não só sobre Rubens Valente, como também sobre outros jornalistas que desejem cobrir fatos de interesse público contra magistrados”, cita nota da associação.
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Em fevereiro, o jornalista pagou metade do valor total da indenização, que inicialmente seria arcada meio a meio entre ele e a editora responsável pela publicação. A Justiça, no entanto, classificou Valente como “devedor solidário” da editora, o que o obriga a pagar o restante do valor, caso a editora não o faça. O montante deve ser pago até a próxima semana - sob pena de penhoras e bloqueios de bens.
Confira abaixo a entrevista exclusiva de Rubens Valente à Gazeta do Povo:
Você considera essa revisão de sentença como um recado do alto escalão do Judiciário de que não serão toleradas críticas contra figuras proeminentes desse poder?
Rubens Valente: Sim. Considero um recado dos membros do STF aos jornalistas e às editoras de livros de um modo geral. Eles estão dizendo: “Se nossos ministros forem criticados de uma forma que eles não gostem, nós vamos reagir”. Mas não sou nem eu que estou dizendo. Veja-se as declarações do presidente do Supremo, Luiz Fux, no ano passado. Ele associa “ataques” a ministros do STF como ataques à instituição Supremo.
Ele mencionou “honra dos cidadãos que se dedicam à causa pública” e, quanto às críticas, citou que elas “ferem biografias”. Ora, ações sobre honra e biografias de qualquer brasileiro devem tramitar na primeira instância, e o Supremo é uma corte recursal. Depois de ouvir isso do presidente do tribunal, como acreditar que o STF será imparcial no julgamento de um recurso que trata de um de seus membros?
Exatamente como foi o nosso caso. O Recurso Extraordinário com Agravo (nº 1.323.058-DF) a que demos entrada no Supremo foi julgado a jato, em poucas semanas, numa Turma e sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Quando estávamos nos preparando para entregar memoriais e tentar agendar audiências com os ministros, inclusive reunindo dinheiro para pagar passagem aérea e hotel para meu advogado, que mora em São Paulo, o recurso foi julgado em seu mérito. Um recurso que demora meses, talvez anos para ser julgado, no nosso caso foi julgado em poucas semanas.
Não foi, ao contrário do que se possa imaginar, uma análise superficial sobre aspectos técnicos do recurso. Inclusive, o ministro Alexandre de Moraes ampliou os efeitos de uma decisão anterior do STJ. O STF rejeitou nosso recurso e acolheu o de Gilmar Mendes, colega de Alexandre, que trabalha no mesmo prédio. Só posso interpretar como um recado direto, na forma da defesa corporativa explicitada pelo próprio ministro Fux.
Qual é o efeito de uma intimidação desse porte no sentido de desencorajar a fiscalização da imprensa sobre o Judiciário?
Rubens Valente: Ao longo dos últimos oito anos, desde que Gilmar Mendes abriu a ação, eu recebi sugestões e informações de inúmeros cidadãos para investigar, jornalisticamente, determinados aspectos sobre a vida e a carreira do ministro Gilmar Mendes e pessoas próximas a ele. E eu devo dizer que não foram poucas as vezes. Nesse período exerci atividades na Folha de S. Paulo e no portal UOL. Em todas essas oportunidades, eu me declarei eticamente impedido de trabalhar em tais investigações jornalísticas. Ou seja, a mera abertura do processo de Gilmar Mendes já surtiu um efeito inibitório na minha atividade.
Tenho a certeza – inclusive ouvindo o mesmo de diversos colegas de profissão – de que casos como o meu, efetivamente, inibem uma das funções mais nobres e salutares do jornalismo, que é o acompanhamento dos principais servidores públicos do Estado, como Gilmar.
É preciso ficar bem estabelecido que quando um magistrado move uma ação contra alguém, um jornalista, por exemplo, não estamos falando de um processo simples qualquer. O juiz está “jogando na sua própria casa”, ou seja, seus próprios amigos e colegas é que vão julgar o que ele está dizendo contra um terceiro. Por isso reitero aqui o que já falei em outras oportunidades: o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) precisa criar urgentemente balizas técnicas em casos do gênero. É necessária uma perícia, o amplo contraditório, a oitiva de testemunhas, o depoimento do réu. Eu, por exemplo, jamais tive meu depoimento tomado em qualquer instância do Judiciário brasileiro. Jamais pude apresentar uma perícia. Jamais testemunhas minhas foram ouvidas.
Você tem até quando para pagar esse valor?
Rubens Valente: Eu tenho poucos dias para quitar esse valor, acredito que até o começo da semana que vem - preciso checar com meu advogado.
No começo de 2022, Gilmar Mendes ajuizou a ação de execução da dívida, ou seja, pediu que o Judiciário do Distrito Federal iniciasse a cobrança do valor. Gilmar indicou o valor de R$ 285 mil (hoje, com uma multa que julgamos incabível, está em R$ 310 mil). Com recursos próprios, paguei R$ 143 mil. A outra metade caberia à editora. Gilmar Mendes, então, pediu que eu fosse considerado “devedor solidário” da editora, ou seja, exige que eu pague pela editora. E assim o juiz decidiu a favor do ministro.
Diante da ordem judicial de incluir, numa eventual reedição do livro, a sentença e a petição inicial do processo aberto pelo Gilmar Mendes, você pretende reeditá-lo?
Rubens Valente: Nas condições impostas pelo Supremo, o livro jamais será reeditado. Assim, ele foi virtualmente banido do território nacional como consequência dessa ordem do STF. Eu acho que nem as piores obras da história mundial sofreram tal intervenção judicial, que mancha a história e um dia ainda haverá de envergonhar o Supremo brasileiro.
O livro não será reeditado por duas razões fundamentais: primeiro, eu e a editora nos recusamos a participar dessa violência intelectual, que atropela alguns dos mais comezinhos direitos numa democracia, como o direito à liberdade de expressão. Ser obrigado a enxertar no meu livro textos que não são da minha autoria é uma ideia odiosa e própria de regimes autoritários, que ofende minha cidadania e será rejeitada a qualquer preço.
Em segundo lugar, a decisão da Turma do STF impõe a publicação da petição de Gilmar Mendes e da decisão do Tribunal de Justiça do DF com o mesmo corpo de letra usado no restante do livro. Isso implicará possivelmente 200 páginas a mais, deixando a obra com cerca de 700 páginas; uma publicação economicamente inviável.
Mas haveria uma solução muito mais simples para tudo isso: se discordam do meu livro, o ministro Gilmar Mendes e o Supremo poderiam publicar seus próprios livros e manifestar suas posições sobre a Operação Satiagraha. Com certeza eles achariam editoras ávidas por essa publicação. Não é assim que uma democracia deveria funcionar? Ninguém é obrigado a concordar com o que escrevi; quem discorda, faça seu próprio livro.
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