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Resumo desta reportagem:
- Em julgamento virtual no STF, o relator Edson Fachin sugeriu proibir a prática de revistas íntimas em visitantes de presos em todo o país. Quando sua tese vencia por 5 a 4, Gilmar Mendes pediu destaque e paralisou o processo, que será retomado no Plenário físico.
- A amplitude das restrições de Fachin gerou preocupação entre especialistas em segurança pública, que apontam graves riscos no entendimento. O ministro chegou a propor que todas as provas encontradas nesses procedimentos fossem anuladas pela Justiça.
- Alexandre de Moraes abriu divergência e sugeriu que as revistas prosseguissem com mais critérios e apenas em casos excepcionais.
- Itens como drogas, armas, celulares e até mesmo papéis com mensagens a lideranças do crime organizado costumam ingressar nos presídios de forma oculta com visitantes. Equipamentos para revista mecânica não são uma realidade em grande parte dos estados e possuem fragilidades.
No dia 12 de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início ao julgamento que poderia proibir toda forma de revista íntima em visitantes nos presídios do país. Em Plenário virtual, os ministros analisavam recurso com repercussão geral reconhecida, ou seja, o desfecho serviria de parâmetro para todos os casos similares na Justiça.
No julgamento, os ministros já haviam formado maioria para acompanhar a tese do relator, Edson Fachin, que entendia que revistas nas regiões genitais ou com exposição de parte do corpo em visitantes no sistema carcerário do país seriam inconstitucionais, pois violariam a dignidade da pessoa humana, bem como os direitos fundamentais à honra, intimidade e privacidade.
Na tese, Fachin determinou que presídios que não possuem equipamentos eletrônicos para detectar a entrada de objetos ilícitos, como drogas, armas, celulares e até mesmo papéis com mensagens a lideranças do crime organizado, não poderiam justificar a falta dos dispositivos para seguir com as revistas íntimas. O ministro determinou, ainda, que todas as provas coletadas nesses procedimentos deveriam ser invalidadas.
A rigidez da tese, que já havia sido acompanhada por seis ministros, atraiu preocupação de especialistas em segurança pública, já que em seu voto Fachin tratou como se todas as revistas desse tipo fossem presumidamente e integralmente vexatórias e humilhantes. As normas propostas pelo ministro eram muito mais amplas do que ocorre em vários países desenvolvidos, que permitem as revistas íntimas, porém com critérios claros para impedir abusos e excessos.
No entanto, no último dia do julgamento virtual, 19 de maio, o ministro André Mendonça mudou seu voto de apoio à tese de Fachin, e com isso foi desfeita a maioria que havia se formado horas antes para proibir o procedimento. Após a mudança de entendimento de Mendonça, o ministro Gilmar Mendes decidiu pedir destaque, retirando o julgamento da modalidade virtual e conduzindo-o ao plenário físico para discussão presencial entre os ministros.
A divergência à tese de Fachin, aberta por Alexandre de Moraes, foi seguida por três outros ministros. O julgamento, ao ser suspenso, contava com 5 votos a 4 pela proibição das revistas íntimas e, com o pedido de destaque, terá o placar reiniciado. Ainda não há data para a retomada do julgamento de forma presencial.
Para fontes ouvidas pela Gazeta do Povo, há a necessidade de se estabelecer critérios mais rígidos ao procedimento da revista íntima para evitar abusos, entretanto o entendimento amplo de Fachin traria graves consequências à segurança pública e colocaria em risco detentos, familiares e agentes do sistema penitenciário.
“Os estabelecimentos prisionais ficariam mais vulneráveis e suscetíveis à entrada de objetos ilícitos, porque a introdução desses itens por familiares ainda é uma prática comum. Isso expõe o próprio familiar, porque muitas vezes ele leva porque é obrigado. Então vistorias mais rígidas são uma forma de proteção ao próprio visitante”, explica a advogada criminalista Ana Claudia Guimarães, ex-diretora de presídios no Ceará.
“Não havendo essa vistoria rígida, o familiar pode ser pressionado pelo preso. E muitas vezes quem leva está acima de qualquer suspeita. Isso acaba expondo ao risco tanto o estabelecimento prisional – porque da mesma forma que drogas, podem passar armas – quanto o próprio visitante”, prossegue.
Entenda o caso
O processo em questão, que chegou ao STF em 2016, iniciou cinco anos antes quando uma mulher foi presa em flagrante na Cadeia Pública de Porto Alegre, o antigo Presídio Central, com 100g de maconha escondida na região genital dentro de um preservativo. A droga, segundo ela, seria para o irmão que estava preso. O procedimento foi feito após o presídio receber uma denúncia anônima em relação à mulher, que posteriormente foi condenada pelo crime de tráfico de drogas. A pena inicial, que era para cumprimento em regime aberto, foi substituída por prestação de serviços à comunidade.
A Defensoria Pública do estado recorreu da decisão, e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) decidiu absolvê-la sob alegações diversas, como a ocorrência de crime impossível, quando a consumação do delito é inviável. Em outras palavras, os magistrados entenderam que ela invariavelmente teria que se submeter à rigorosa revista, o que tornaria impossível a consumação do crime. Destaca-se, entretanto, que a busca pessoal não é critério obrigatório, e ocorre mediante fundada suspeita – ou seja, foi a denúncia anônima que motivou a revista íntima, levando à identificação da droga.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) recorreu da decisão, levando o caso ao STF. O entendimento do órgão foi de que vedar a realização de exame íntimo mesmo quando não há objeção do examinado significaria um “verdadeiro salvo-conduto à prática de crimes”. Até o momento, o aspecto da revista íntima sequer estava em foco. Ao recorrer da medida, no entanto, o Ministério Público trouxe esse tema à tona, o que motivou a análise do Supremo especificamente sobre o procedimento.
Em voto divergente, Moraes aponta “efeitos catastróficos” na tese defendida por Fachin
Na divergência frente ao voto de Edson Fachin, Moraes argumentou que as revistas íntimas não podem ser sempre e automaticamente definidas como vexatórias e degradantes – e, portanto, inconstitucionais. “Dar essa automaticidade, que uma revista íntima é vexatória per si, isso terá efeitos catastróficos em muitos ramos da persecução penal”, disse Moraes.
O ministro trouxe exemplos de vários países “que proclamam e defendem absoluto respeito aos direitos humanos” e que mesmo assim não proíbem a prática. Segundo Moraes, o mais comum nos ordenamentos jurídicos mundo afora é a vedação de excessos e abusos, mas não a absoluta impossibilidade.
“Não se pode permitir que o exercício do direito de visita seja utilizado para ingresso de drogas, celulares e ordens de facções criminosas, para comunicação entre criminalidade organizada de dentro e fora dos presídios”, declarou. “São absolutamente necessárias as revistas”, pontuou ao frisar que nem sempre os equipamentos de detecção conseguem identificar itens ilícitos portados por visitantes.
De fato, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), somente no primeiro semestre de 2020 foram apreendidos 25,5 mil aparelhos celulares e 83 armas de fogos com visitantes de presos que tentavam ingressar com os itens nas unidades prisionais. Nesse período também foram feitos 254 mil flagrantes de drogas em visitantes de detentos.
Por fim, Moraes sustentou que uma vez que não seria possível considerar todas as revistas íntimas como inconstitucionais, também seria impossível presumir como ilícitas todas as provas coletadas em procedimentos dessa natureza.
O ministro propôs nova tese, em substituição à de Fachin, sugerindo que buscas desse tipo devem ser uma medida excepcional para quando outros métodos não forem suficientes, e para elas deve haver rigoroso protocolo. Nos casos em que houver a necessidade de busca em áreas genitais, ele apontou que a medida deve ser facultada ao visitante; caso não queira fazer, não será permitido o acesso ao presídio. O exame físico nessas regiões também deveria ser feito obrigatoriamente por um médico do mesmo sexo do visitante, segundo o ministro.
Com ausência de lei nacional específica para revistas íntimas, estados mantêm diferentes regras
A revista pessoal está prevista no art. 244 do Código de Processo Penal (CPP), que determina que o procedimento independe de mandado judicial nos casos em que há “fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.
Já as normas para revistas íntimas variam de estado para estado. Enquanto alguns proíbem a prática, outros a permitem mediante regras específicas, em especial determinando que sejam feitas por pessoas do mesmo sexo do visitante. A falta de equipamentos para as buscas, como scanners corporais, detectores de metais e aparelhos de raio-X, por exemplo, são limitadores em comum na maioria dos estados.
Há, no Congresso Nacional, projetos de lei em tramitação que tratam do tema. O principal deles, o PL 7.764/2014, foi aprovado no Senado e aguarda apreciação na Câmara. A proposta prevê a proibição de desnudamento total ou parcial nas revistas, determina a priorização do uso de equipamentos eletrônicos e destina a revista manual para situações pontuais, a ser feita obrigatoriamente por pessoa do mesmo sexo do visitante.
Para Ana Guimarães, ainda que a restrição absoluta às buscas manuais seja prejudicial, o procedimento não pode ser feito de maneira indiscriminada. A ex-diretora de presídios concorda com a divergência aberta por Moraes e aponta que caso haja fundada suspeita e o visitante opte por não se submeter à revista íntima, poderá ir embora sem adentrar no presídio, não sendo obrigado a passar pelo procedimento.
Já Adriano Klafke, especialista em segurança pública e em Direito Constitucional, faz uma ressalva quanto à substituição integral das buscas manuais pelas mecânicas, por meio de scanners corporais e demais dispositivos. “Esses equipamentos não são efetivos de forma totalmente confiável quando se trata de itens introduzidos em cavidades, desde pequenas armas com invólucros de borracha ou plásticos, e até celulares. A eficácia nesses casos é bem baixa”, afirma. Klafke reforça que eventual aprovação da tese sugerida por Fachin se traduziria em enorme facilitação ao crime organizado, especialmente para facções ligadas ao narcotráfico.