Uma proposta em discussão no Senado pode resultar na inclusão de uma alternativa ao “masculino” e “feminino” nos documentos oficiais. O texto propõe a criação de um “gênero neutro” além das duas opções existentes. A proposição surgiu como uma Ideia Legislativa na página do Senado na internet e obteve em três meses os 20 mil apoiadores necessários para se transformar na “Sugestão Legislativa 4/2020”, que será apreciada pela Comissão de Direitos Humanos da Casa. Se os parlamentares entenderem que a proposta merece seguir adiante, ela pode se transformar em lei.
A ideia foi apresentada em dezembro do ano passado por Lázare Heliodoro, ativista que se identifica como tendo gênero “não binário”. A proposta, sucinta ao extremo, adota a tese de que o sexo biológico e o gênero são elementos distintos e que, portanto, podem divergir. “Com a inclusão do gênero neutro nos documentos oficiais de identificação, pessoas transgênero e transexuais não binárias e intersexuais (antigas hermafroditas) poderão retificar seus dados de forma representativa para cada uma”, afirma, sem apresentar detalhes de como a mudança se concretizaria. Em uma enquete aberta pelo próprio Senado na internet, a sugestão recebeu aproximadamente 85% de apoio.
Por ser uma Sugestão Legislativa, a proposta será inicialmente analisada pela relatora escolhida para a tarefa, a senadora Leila Barros (PSB-DF). Mas, por ora, ela diz ter outras prioridades. A parlamentar afirma não saber quando o seu parecer será apresentado. “A senadora Leila Barros e a equipe técnica estão focados na pauta envolvendo o estado de calamidade pública em função da pandemia. Na retomada das atividades presenciais e do pleno funcionamento das comissões, poderemos nos aprofundar no tema realizando audiências públicas”, disse à Gazeta do Povo, em nota, a assessoria de comunicação da parlamentar.
Se resolver levar o assunto adiante, a senadora deve enfrentar dificuldades se quiser encampar a proposta de gênero neutro nos documentos. Além de ser questionável do ponto de vista científico, uma mudança do tipo criaria diversas dificuldades de natureza prática. Se por “documentos oficiais de identificação” a proposta se referir à carteira de motorista e à cédula de identidade, isso significa que outros documentos que utilizam esses dados (como a carteira de trabalho e o passaporte) também o farão. Além disso, é razoável supor que a própria certidão de nascimento passaria a permitir que os pais atribuam aos filhos a condição de “gênero neutro” – o que já é realidade em alguns estados americanos, não sem muita controvérsia.
“É necessário cuidado com mudanças legislativas que contemplem o reconhecimento de um terceiro gênero ou um gênero não binário sem levar em conta as diversas implicações práticas que isso acarreta”, afirma a professora Denise Albano, do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS). A própria Constituição Federal utiliza apenas as categorias de “homem” e “mulher”. De acordo com a professora, uma das áreas em que a mudança teria impacto é a da Previdência. Hoje, o sistema prevê regras distintas para homens e mulheres – elas se aposentam mais cedo. Com o gênero neutro, seria preciso aplicar uma nova regra – e, até que isso ocorresse, as pessoas do “terceiro gênero” poderiam cair em um vácuo legal.
Na área penal, haveria outras consequências. Alguns crimes, como o de feminicídio, se baseiam no binômio homem-mulher. O próprio cumprimento da pena cairia num impasse. “Por exemplo, a mulher submetida à prisão preventiva terá direito à prisão domiciliar se tiver filho menor de 12 anos, enquanto para o homem esse benefício será concedido apenas se for o único responsável pelos cuidados com o filho com 12 anos incompletos. A maioria dos juízes não se sente confortável para julgar sem parâmetros precisos e objetivos para determinar restrição ou ampliação de direitos, em especial aqueles que afetam a liberdade”, afirma a professora Denise.
Autor da sugestão, o ativista Lázare Heliodoro confirma que a ideia não é apenas obter um reconhecimento simbólico na Carteira de Identidade, mas refazer todo o arcabouço legal para incluir uma espécie de terceiro sexo. "A solução, na minha opinião, em caso de leis que fazem diferença entre os gêneros binários homens e mulheres, é promover uma adequação do Legislativo à existência de outras pessoas fora do sistema binário", diz ele.
Outro problema é de natureza científica. A proposta menciona especificamente que a criação do gênero neutro beneficiaria duas categorias: as pessoas “não binárias” e os intersexuais (ou hermafroditas). Mas essa classificação envolve fatores subjetivos.
No caso das pessoas intersexo, há características físicas que podem ser usadas para uma avaliação objetiva. “Esta é uma anomalia muito rara, que ocorre aproximadamente uma vez a cada 2 mil nascimentos. É uma condição genética ou anatômica”, explica Akemi Shiba, psiquiatra especializada no assunto.
Mas, ao incluir as pessoas que afirmam ser “não binárias”, a regra adota critérios não verificáveis. Da forma como a sugestão foi apresentada, qualquer pessoa poderia se “converter” para o gênero neutro.
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Batalha ideológica
Os “não binários” são uma subcategoria – a das pessoas que afirmam não se identificar com um dos dois gêneros tradicionais. O problema dessa classificação é que ela é puramente subjetiva: para ser não binário, basta se declarar como tal. Essa subjetividade é um fator significativo quando a mudança pode trazer benefícios legais. “Não existe o terceiro sexo. O que acontece é que, socialmente, o conceito de gênero vem se fragmentando”, afirma Akemi Shiba.
Por trás da pressão por uma mudança de legislação, está uma batalha pelas palavras que está longe de ser nova. Os militantes LGBT defendem ainda, com frequência, que a própria lógica da língua portuguesa seja modificada para adotar palavras neutras em vez de masculinas. A própria expressão “gay”, em inglês, originalmente significava apenas “alegre” até que foi adotada pelos militantes homossexuais.
O doutor em Linguística e professor da USP Eduardo Calbucci afirma que o idioma é um campo de batalha ideológico. “Nenhuma linguagem é neutra. A linguagem é essencialmente ideológica e revela formações discursivas”, ele diz. Para o professor, a despeito de suas intenções, uma legislação que crie novas categorias linguísticas teria um efeito limitado na prática. “Uma lei como essa me parece que tem ótimas intenções mas vai ser absolutamente inócua – não está se atacando o problema, está se atacando uma consequência do problema”, diz Calbucci, que complementa: “A linguagem é sim uma forma de mudança do mundo, mas dificilmente a gente vai conseguir qualquer forma de mudança no pensamento das pessoas apenas por uma lei”.
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