Feriado de Páscoa na Ilha de Superagüi. O sol forte que brilhara o dia todo num céu de poucas nuvens, começava a se despedir, lembrando o verão que já passou. Era tarde de sexta-feira quando o astro poente caiu atrás da Ilhas das Peças, formando um dos mais belos cartões-postais do litoral paranaense. A previsão do tempo alertava: uma forte frente fria estava por vir. Mas na vila de Superagüi, nem sinal de qualquer agitação por parte da comunidade caiçara. A tranqüilidade continuava inalterada, poucos turistas, crianças brincando na areia, voluntários de ONGs com suas pranchetas de pesquisas, mulheres nativas limpando camarão, ventos e mar calmo. Ninguém poderia imaginar que aquela paisagem se transformaria num cenário absurdo e surreal de matadores entocados, cachaça medicinal, mar de ressaca, ventos intensos e assassinato!
Superagüi é uma ilha artificial, criada com a abertura do Canal do Varadouro, na década de 40, para que houvesse uma ligação pela baía até a região de CananéiaSP. Em 1989, ela foi declarada Parque Nacional, onde apenas a Vila de Superagüi ficou fora dos limites do parque. A ilha faz parte do complexo estuário Lagamar entre Iguape e Paranaguá, uma das regiões mais importantes do país em termos de biodiversidade. Inclui restingas, mangues, canais de rios, elevações isoladas, praias desertas, além de diversas trilhas ecológicas e exuberante Mata Atlântica. Abriga algumas espécies de animais raros ou em extinção, como o papagaio-chauá, o mico-leão-de-cara-preta e o jacaré-de-papo-marelo. Riqueza encontrada também na sua fascinante história, marcada pela presença do aventureiro alemão Hans Staden, que naufragou na ilha em 1549; e a vinda do pintor suíço Willian Michaud, por volta de 1850, onde morou desde os 20 anos, casando-se com uma nativa e espalhando nove filhos e uma filha pelas ilhas adjacentes.
Passados 17 anos desde sua importante criação, o Parque Nacional de Superagüi ainda não possui um plano de manejo, prejudicando principalmente as comunidades que vivem dentro dessa área e sofrem com as restrições impostas pelo Ibama. A Barra do Ararapira é a maior delas, localizada no extremo norte da ilha, divisa do Paraná com o estado de São Paulo. O local de características únicas, fica no encontro das águas avermelhadas do canal com o agitado mar que banha a Praia Deserta, formando uma belíssima mistura de cores e contrastes. Seu Rubens Muniz, 59 anos, líder da comunidade, nasceu no vilarejo e sempre lutou para preservar o local, ajudando também na implantação do Parque Nacional. "Atualmente, o Ibama mais atrapalha do que ajuda. Conseguimos que a Brasil Telecom instalasse linhas de telefone fixo para a população, mas nada saiu do papel porque faltou autorização do instituto". Selma Cristina Ribeiro, chefe do Ibama no Parque Nacional de Superagüi, explica que está tentando formalizar um termo de compromisso com a comunidade, definindo a aplicação de um plano diretor. "O problema é a parte jurídica do Ibama e o Ministério Público, que nos acusa em legislar por contar própria".
Enquanto o impasse não é solucionado, Barra de Ararapira continua isolada, sem energia elétrica, onde 70 famílias vivem basicamente da pesca. Mesmo com todas as dificuldades, Seu Rubens construiu uma pousada e um bar para atender os poucos turistas que aparecem por lá. "A maioria são paulistas que vêm da Ilha do Cardoso, atrás das folhas de cataia", conta ele. A planta, que na linguagem tupi quer dizer "folha que queima", é mais conhecida pelos nativos do litoral como uma bebida preparada à base da própria erva. "É o uísque caiçara", explica Seu Rubens. Apesar de ser uma planta comum no litoral norte do Paraná e no Vale da Ribeira, apenas as folhas nativas de Ararapira são boas para serem curtidas na cachaça, gerando uma cor forte e gosto marcante. "Meus pais já usavam a cataia para fazer chá, curar resfriados, azia. Em 1985, achei ela cheirosa e resolvi colocar na pinga. Os amigos experimentaram, gostaram e a invenção acabou se espalhando". Além de aroma único, parecido com uma canela amarga, a cataia reduz a acidez da cachaça, tornado a bebida mais suave a partir do segundo gole. "Ela fica boa mesmo é com cachaça barata", garante o dono do bar.
Para chegar até a longínqua Barra do Ararapira é necessário ter no mínimo espírito de aventura. A melhor opção é circundar a Ilha de Superagüi por dentro da baía, percorrendo o Canal do Varadouro. Pelo mar aberto, a viagem é mais curta, mas nem sempre segura por causa dos traiçoeiros bancos de areia. A mais econômica e desafiadora é, sem dúvida, percorrer os 38 quilômetros da Praia Deserta a pé ou de bicicleta. Por causa dos pesados equipamentos, a Expedição optou alugar uma charrete na Vila de Superagüi, viagem que durou mais de 4 horas de sábado até Barra do Ararapira, desvendando situações até então inimagináveis. No caminho solitário pela Praia Deserta, um dos poucos sinais de civilização é a antiga casa de Seu Ilídio, falecido no ano passado, que agora virou área de camping tocada pelo seu filho Carlinhos. Segundo os moradores de Ararapira, Ilídio faleceu por complicações depois de levar dois tiros do "vizinho" Antônio Dias, temido e conhecido por todos como "o matador" da ilha.
Antônio Dias mora quase no final da Praia Deserta, numa fazenda com grandes casuarinas plantadas, que podem ser vistas de longe. Vive isolado com a mulher, filhos e netos. João Pires, pescador de Ararapira e cunhado de Antônio Dias, conta que quando sua irmã deixou de ter idade para gerar filhos, o "matador" obrigou a própria filha a ter relações sexuais com ele. "O homem já possui quatro filhos-netos com ela", conta João. Por não ter medo de nada, Antônio Dias costuma jurar seus desafetos de morte. Quem pesca na frente de sua casa geralmente é recepcionado com tiros de espingarda. Até a Selma, chefe do Ibama no parque, foi ameaçada quando disse que gostaria de cortar as árvores exóticas da fazenda. Já turistas e pessoas que não conhece, Seu Dias costuma ser hospitaleiro e de bom papo. Os jurados da Barra do Ararapira que precisam ir a Superagüi, atravessam a praia apenas à noite ou armados até os dentes. Durante o dia, é comum encontrar as crianças na praia, que se comportam como "pequenos espiões", avisando o pai-avô se algum jurado aparecer em frente de casa. Uma família condenada pelo sangue.
Tenebroso domingo
Barra do Ararapira amanheceu escura, chuvosa e gelada. A frente fria chegara causando tédio e apatia naquele domingo de Páscoa. Pelo radioamador, vem à tona uma notícia ainda mais obscura: Jackson Martins das Neves, 18 anos, havia sido assassinado na vila de Superagüi. O principal suspeito era Jair, filho de Antônio Dias, que dera uma facada certeira no coração do rapaz. Na noite de sábado, logo depois da missa, Jackson e mais dois amigos saíram de Ararapira de bicicleta com destino a Superagüi, para curtir a agitação da noite local. Mesmo com seu pai implorando para não ir, Jackson resolveu ir ao encontro de seu destino. Era sabido que seu meio-irmão morava na vila e tinha dado uma surra num dos filhos de Antonio Dias no último carnaval. O suficiente para qualquer um da família ser jurado de morte.
Nunca tinha acontecido tal tragédia na Barra do Ararapira. O sofrimento dos familiares do rapaz assassinado contrastava com a indignação e fúria do resto da comunidade. "Se a polícia dessa vez não fizer nada, vamos ter que tomar uma providência", conta João Pires, que custava a acreditar no ocorrido. Naquele momento de dor, era iminente a chance de estourar uma guerra pela Praia Deserta, na tentativa da comunidade fazer justiça com as próprias mãos. A natureza também mostrava seu descontentamento, almejando ventos intensos que deixaram o mar revolto e irreconhecível. À tarde, quando a maré subiu, ondas invadiram o vilarejo levando consigo pedaços de terra e condenando o bar do Seu Rubens, construído há pouco tempo. Parecia um castigo para toda Ararapira, que vivia sua Paixão de Cristo aterrorizada por uma ilha jurada de sangue e impunidade.
SITE OFICIAL Roteiro, diário de bordo e outras informações dessa aventura podem ser conferidas no www.coracaodoparana.com