Ouça este conteúdo
Enquanto o Senado americano vota a nomeação da juíza Amy Coney Barrett para a Suprema Corte, o tribunal também pode julgar um caso relevante sobre o aborto. O item é um pedido de flexibilização nas regras que tratam do fornecimento de uma pílula abortiva. Não está claro quando a Suprema Corte vai tratar do caso – se antes ou depois da confirmação do novo membro do tribunal pelo Senado –, mas essa pode ser a primeira deliberação da Corte sobre o aborto depois da morte de Ruth Ginsburg, a juíza de inclinação esquerdista que votou sucessivas vezes contra a causa pró-vida.
A ação foi protocolada pelo American College of Obstetricians, entidade que representa obstetras do país, ao lado de outras entidades acadêmicas e profissionais. O argumento central é o de que o governo americano agiu indevidamente quando, ao ampliar o uso da telemedicina durante a pandemia do Covid-19, não facilitou o acesso à mifepristona, uma das duas pílulas autorizadas para a realização do aborto.
Antes de a Corte superior decidir sobre o tema, um juiz de Maryland já acatou um pedido semelhante e derrubou a restrição. Na semana passada, a Suprema Corte estabeleceu que, por ora, a decisão do magistrado ficará em vigor, e que o tribunal de Maryland deve analisar o caso para reavaliar a decisão em até 40 dias. “Sem indicar a visão desta Corte sobre os méritos da liminar do tribunal, uma análise mais abrangente auxiliaria a revisão desta Corte”, argumenta, de forma sucinta, a decisão do mais alto tribunal americano. Ao contrário do que ocorre no Brasil, as sessões na Suprema Corte são fechadas e o tribunal se pronuncia por meio de notas após as decisões terem sido tomadas.
Riscos para a gestante
O comércio da mifepristona está condicionado à realização de um procedimento chamado de REMS, sigla em inglês para Avaliação de Risco e Estratégia de Mitigação, que exige visitas a um profissional de saúde e não pode ser feita a distância – a paciente precisa retirar o medicamento pessoalmente e assinar um formulário informando estar ciente dos riscos da ingestão do medicamento, que pode causar sangramento intenso e infecção. Os autores da ação querem derrubar a exigência do REMS. “A manutenção, pelo FDA, da exigência de requerimento presencial para a Mifepristona ameaça a saúde dos pacientes, dos profissionais de saúde e do público em geral”, diz o pedido.
O juiz Samuel Alito, da Suprema Corte, apresentou um voto em separado sobre o caso. Para ele, o tribunal deveria ter derrubado imediatamente a decisão do juiz de Maryland. Alito observou que o Judiciário manteve restrições ao funcionamento de igrejas - restringindo a liberdade religiosa garantida pela Primeira Emenda - durante a pandemia, ao passo que tomou, ainda que provisoriamente, uma medida para expandir o acesso à pílula abortiva.
“Ao mesmo tempo em que a Covid-19 gerou justificativa para as restrições à Primeira Emenda, o tribunal regional viu a pandemia como motivo para expandir o direito ao aborto reconhecido em Roe X Wade”, disse ele, que foi além: “O juiz aparentemente não estava incomodado com o fato de que os responsáveis pela saúde pública em Maryland consideraram seguro para mulheres (e homens) sair de casa e participar de inúmeras atividades que apresentam no mínimo tanto risco quanto visitar uma clínica – como jantar em um restaurante, ir a cabeleireiros, barbearias, todos tipos de estabelecimentos de varejo, academia (...), salões de manicure, eventos esportivos para jovens e, claro, os cassinos do estado”.
Roe X Wade é o caso que, em 1973, levou a Suprema Corte a liberar o aborto em todo o país. Até hoje, a decisão impede que os estados ou o Congresso aprovem qualquer legislação que seja interpretada como restritiva demais sobre o pretenso direito à realização do aborto. O pedido do American College of Obstetricians tenta usar o precedente para argumentar que a política do governo durante a pandemia – ou seja: a simples manutenção das regras para a obtenção da pílula abortiva – impõe “um fardo indevido sobre direito das pacientes ao aborto”.
O caso Roe X Wade, entretanto, se baseia em argumentos juridicamente questionáveis, e que podem ser revistos caso Amy Coney Barrett seja confirmada na Suprema Corte. A Constituição americana não concede nenhum direito ao aborto – o texto simplesmente não menciona o tema diretamente, embora, evidentemente, sustenta o direito à vida. A liberação, via Suprema Corte, usou como pretexto o direito à privacidade. A própria autora da ação que pedia autorização para fazer um aborto, Norma McCorvey, confessou anos depois que mentiu à Suprema Corte ao dizer que a gestação resultara de um estupro.
Amy Coney Barrett, a indicada de Trump para a Suprema Corte, já assinou um manifesto público criticando a jurisprudência de Roe X Wade. Se ela for nomeada haverá, em teoria, uma maioria de 6 a 3 juízes com tendência conservadora no tribunal. Mas ainda não está claro se essa composição bastará para reverter Roe X Wade, já que alguns dos juízes de inclinação conservadora por vezes adotam posturas mais à esquerda em alguns temas.
Amy Coney Barrett participa de audiência no Senado, que tende a confirmar sua indicação para a Suprema Corte. Na primeira sessão, ela prometeu ser fiel ao que determina a Constituição: “Eu acredito que os americanos de todas as origens merecem uma Suprema Corte independente, que interprete nossa Constituição e nossas leis da forma como elas foram escritas. E eu acredito que posso servir ao meu país exercendo esse papel”, afirmou.