O Supremo Tribunal Federal (STF) julga hoje se o sistema de cotas no ensino superior público fere ou não a Constituição Federal. Em jogo estão o ingresso na universidade baseado em critérios raciais e as políticas afirmativas para alunos oriundos de escolas públicas. Serão julgadas duas ações sobre o assunto.
A de maior relevância é a chamada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 186, ajuizada em 2009 pelo partido DEM contra o sistema de cotas raciais da Universidade de Brasília (UnB), em vigor desde 2006. Na ação, o DEM alega justamente a inconstitucionalidade da política de cotas adotada pela UnB. A decisão sobre a ADPF terá impacto no Poder Judiciário e na administração pública, que deverão agir conforme o resultado do julgamento do Supremo.
Já o segundo caso que está na pauta do STF corresponde a um recurso extraordinário proposto por um estudante contra as cotas para negros e estudantes de escolas públicas estabelecidas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). As ações serão julgadas quase um ano depois de o relator, ministro Ricardo Lewandowski, tê-las liberado para entrar na pauta de julgamentos.
Em ocasiões anteriores, quatro dos dez ministros habilitados a votar se manifestaram favoráveis às ações afirmativas: Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Cármen Lúcia e Marco Aurélio Mello. O ministro Dias Toffoli está impedido de participar do julgamento porque, na condição de ex-advogado-geral da União, teve de se pronunciar oficialmente sobre a matéria. Ele diz acreditar que o acesso ao ensino "não deve se basear, exclusivamente, no critério do mérito".
O tema foi debatido em audiências públicas realizadas pelo STF em março de 2010, com a presença de 38 especialistas. A principal polêmica é a adoção da questão racial como critério de seleção em detrimento de outros fatores, como a renda do candidato.
Análise
O doutor em Direito Civil e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Rodrigo Xavier Leonardo é favorável à política de cotas. Para ele, a inserção social e racial altera o cenário das instituições de ensino, com a existência de maior pluralidade de ideias e opiniões. "É uma forma fundamental de disseminar a pluralidade do nosso país e o respeito às diferenças. Essas políticas afirmativas vão ao encontro da Constituição, que no artigo terceiro prega que o país tem o dever de reduzir as desigualdades sociais e regionais", ressalta.
Para o presidente executivo da Academia Brasileira de Direito Constitucional e doutorando em Direito do Estado, Flávio Pancieri, o sistema de cotas é válido, mas deveria contemplar apenas a condição socioeconômica do candidato. "As cotas raciais segregam as pessoas, é um retrocesso histórico. E não é porque o aluno estudou em escola pública que necessariamente terá condição financeira menos privilegiada", enfatiza.
Não cotistas e cotistas têm desempenho similar na UFPR
Por ano, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) recebe uma média de 1,5 mil alunos oriundos de cotas 500 pelos critérios raciais e mil pelos sociais. As 3,5 mil vagas restantes são preenchidas por alunos não cotistas. O sistema foi implantado na UFPr em 2005. E apesar de terem origens sociais diferentes, o desempenho de ambos em sala de aula se equivale. O professor da área de Educação da UFPR Paulo Vinicius Batista da Silva constata que o rendimento dos alunos é muito parecido.
Embora não tenham dados comparativos entre cotistas e não cotistas, Batista garante que nenhum aluno que entrou via cotas deixou a desejar nos estudos. "Pelo contrário, há alguns que dão até mais valor pela oportunidade de cursar uma faculdade, algo que os pais não tiveram."
Renda
O advogado Flávio Pancieri, porém, não acredita que cotas raciais são a melhor alternativa. "Não é porque a pessoa é negra que será pobre. Cotas apenas para quem é negro são equivocadas", diz. Entretanto, Batista afirma que os dados mais atuais disponíveis mostram que, em 2010, alunos cotistas sociais e raciais tinham condições financeiras muito parecidas entre si. Nesse ano, 42% dos alunos que ingressaram por terem estudado em escola pública tinham uma renda mensal familiar que girava entre R$ 700 e R$ 1,5 mil. Já 36% dos alunos negros possuíam renda igual.
"Para 20% dos alunos não cotistas, a renda familiar mensal era superior a R$ 6 mil. Para os negros, esse valor representava 3% dos alunos e só 1% de quem estudou em colégios públicos", cita o educador.
Cotistas alegam ser vítimas de preconceito
Apesar de ter ampliado o acesso de alunos carentes à universidade, o sistema de cotas teve como efeito colateral o acirramento do preconceito no ambiente acadêmico. Muitos cotistas alegam ter sofrido discriminação ou passado por situações constrangedoras.
Aluno do 2.º ano de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Iago Rocha conta que já presenciou cenas de preconceito dentro da instituição. "As pessoas menosprezam os alunos cotistas. Falam que só pode entrar na faculdade quem estuda", lamenta ele, que passou em primeiro lugar no vestibular para cotas raciais da universidade.
Para o professor da Universidade de Brasília Nelson Inocêncio, integrante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, o problema é que o preconceito racial ainda persiste no país mesmo passados 124 anos da abolição da escravatura. "Existe uma lacuna entre o negro e o branco. As cotas são uma justiça histórica. Corresponde ao fato de legislar em favor de segmentos socialmente vulneráveis", opina.