STF insiste em evitar a aplicação de suspeição e impedimento, essenciais para a imparcialidade e legitimidade do processo judicial.| Foto: Bruno Moura/STF
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Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm convertido em letra morta a suspeição e o impedimento, dispositivos legais essenciais para garantir a imparcialidade de julgamentos.

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Essas garantias processuais previstas em lei implicam no afastamento de magistrados sempre que houver riscos de comprometimento da legitimidade do processo por conflito de interesses ou prejulgamento da causa. A resistência em aplicá-las coloca, mais uma vez, a isenção da Corte em xeque.

Em 25 de fevereiro, a defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro solicitou o impedimento dos ministros Cristiano Zanin e Flávio Dino em seu julgamento. O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, negou os pedidos, três dias depois, e considerou os ministros aptos para o julgamento.

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Os advogados do ex-presidente fundamentaram o pedido contra Flávio Dino no fato de que, quando governador do Maranhão, o atual ministro apresentou uma queixa-crime contra Bolsonaro, ação que ainda tramita na Corte.

Já em relação a Zanin, a defesa argumentou que o próprio ministro já havia se declarado impedido para julgar um recurso do ex-presidente. Zanin julgaria o recurso de um caso em que ele mesmo foi o responsável por escrever a representação, próximo ao período eleitoral de 2022, quando ainda exercia o cargo de advogado. A ação tratava-se de uma reunião do ex-presidente com embaixadores no qual, supostamente, ele teria “atacado as urnas eletrônicas, a democracia e diversas autoridades públicas”.

André Pontarolli, mestre em Direito e professor de Direito Penal e Criminologia, explica que a defesa de Bolsonaro optou por pedir o impedimento, em vez da suspeição, provavelmente como parte de uma estratégia jurídica. Ele esclarece que, ao contrário da suspeição, que depende de uma análise subjetiva, os casos de impedimento têm natureza mais objetiva, sendo claramente definidos nas normas processuais.

“Na suspeição, eu tenho que demonstrar a imparcialidade, porque são mais subjetivas as hipóteses previstas, como comprovar a amizade ou inimizade. Já no impedimento é preciso apenas demonstrar que existe uma ação, algo que me parece de uma maior evidência ou mais simples”, ressalta Pontarolli.

Ministros do STF não impediram Moraes de investigar casos que envolviam ele próprio

Mesmo nos casos em que há justificativas claras previstas em lei para ministros se declararem impedidos, isso não tem acontecido.

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Um exemplo citado por Pontarolli é o episódio do aeroporto de Roma, no qual o ministro Alexandre de Moraes julgou os envolvidos no caso em que ele próprio alegou ter sido alvo de injúria e agressão. Para os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, situações como essa criam precedentes negativos e reforçam a percepção de que a imparcialidade judicial tem sido relativizada dentro do Supremo Tribunal Federal.

Bruno Gimenes, mestre em Direito Penal pela UENP, explica que, em investigações para apurar crimes ocorridos nas dependências do STF, a Corte usa uma interpretação controversa de seu próprio regimento e da Constituição Federal para justificar sua competência para conduzir os inquéritos. Contudo, no caso de Roma, o normal seria que, após a conclusão da investigação, o procedimento fosse encaminhado ao Ministério Público Federal para avaliar a possibilidade de uma denúncia em primeira instância ou de um arquivamento. “Não bastasse ter capitaneado a investigação, o STF também processou e julgou o processo que foi arquivado após extinção da punibilidade”, ressalta Gimenes.

Ainda segundo o jurista, “todo esse envolvimento de Moraes na formação das provas no curso da investigação preliminar o torna suspeito”. Em processos de primeira instância, por exemplo, o juiz que supervisiona a investigação não pode julgar o caso – princípio garantido pelo juiz de garantias. O STF, no entanto, definiu que as regras do juiz de garantia não se aplicam a processos iniciados no próprio tribunal, sob o argumento de que se trata de competência penal originária. “Assim, é bem provável que Moraes julgue a ação que trata da sua susposta tentativa de assassinato e ainda seja o relator dela, conduzindo o voto dos demais”, prevê Gimenes.

Papéis de Moraes em delação de Cid também se confundem entre relator e vítima

Durante a delação premiada de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Bolsonaro, há trechos que evidenciam uma sobreposição dos papéis de Moraes, que ora aparece como vítima das ações, ora como julgador do caso.

No depoimento de 22 de novembro de 2024, Moraes questiona Cid:

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“Tá. E quando o presidente, o ex-presidente Bolsonaro, pediu o meu monitoramento, vocês fizeram como?”.

Em outro trecho, na tentativa de confirmar as informações apresentadas por Cid, Moraes fala:

“posteriormente, às vésperas do Natal, quem solicitou o monitoramento deste Relator [referindo-se a si mesmo] foi o ex-presidente Bolsonaro”.

O ministro, ao conduzir o interrogatório, coloca-se simultaneamente como vítima e julgador. Mesmo diante da sobreposição de papéis evidente, Moraes não se julgou impedido nem suspeito no caso. Para os juristas, isso é injustificável.

Gimenes destaca que Moraes segue uma tendência de não reconhecer suspeições e impedimentos que já dura no STF há alguns anos. “Depois da decisão que reconheceu Moro como juiz suspeito na Operação Lava Jato, o STF nunca mais proferiu uma decisão nesse mesmo sentido. Reconhecer impedimentos e suspeições sempre foi um tabu no processo penal brasileiro”, avalia.

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Pontarolli reforça que a atuação de Moraes no caso compromete sua imparcialidade. “No processo penal, se nós temos alguém apontado como vítima, ele é parte nitidamente interessada no desfecho do caso. O que, na minha percepção, é justamente uma nítida quebra da imparcialidade. Não tem como aquele que está como vítima ser colocado na posição de julgador”, finaliza.