
Há 45 anos o cotidiano do feirante Roberto Miquilussi, 59 anos, tem sido o mesmo. Nesse período, foram raros os dias em que ele acordou depois das 2 horas. "Até hoje não me acostumei a esse horário. Mas basta um dia que eu acorde às 8 e me acostumo na hora", brinca.
Sempre por volta das 3 da manhã, Roberto chega a uma das seis feiras que participa de terça-feira a domingo com sua banca de legumes e verduras. Assim como ele, outros 449 feirantes cadastrados na Secretaria Municipal de Abastecimento (SMA) de Curitiba enfrentam a mesma rotina. Inclusive ontem, Dia do Feirante.
Com um dia-a-dia tão severo, o despertador não tem mais função para Roberto. O relógio biológico está programado para despertar sozinho tanto que, exceção à mulher, Roseli, 55, é ele quem acorda os filhos, Leandro, 25, e Ricardo, 23. Além deles, trabalham com Miquelussi a esposa de Leandro, Eunice, 26, e o ajudante Alexandre Rocha, o Tico, 23 anos.
Um dos mais antigos feirantes da cidade, Roberto começou em 62, aos 14 anos, vendendo flores. No começo, a mãe teve de obter uma licença especial do Juizado de Menores. "Ela disse ao juiz que eu não ia fazer esforço. Era totalmente mentira", recorda, rindo. De lá para cá, Roberto nunca mais deixou a profissão. Ficou longe apenas em um período de três meses, no ano passado, enquanto se recuperava de um enfarte. "É um vício tão grande que eu não conseguia ficar em casa. Vinha só para conversar com os fregueses", conta.
E é justamente o bate-papo, o tratamento diferenciado que faz com que as pessoas ainda façam compras em feiras em tempos de concorrência desleal com hipermercados dados da SMA apontam que 120 mil curitibanos passam semanalmente nas seis feiras de hortifrutigranjeiros e 11 gastronômicas que rodam por 42 locais da cidade. "Aqui, além de ter tudo o que preciso, me tratam pelo nome, trocam meu cheque e me divertem", conta a bancária aposentada Lilian Bonfim, 51 anos, freguesa há 20 anos da banca e que, como boa paranista, não perde a oportunidade de mexer com o feirante quando o Atlético de Roberto tropeça. Lilian foi a segunda freguesa a ser atendida na banca na última quinta-feira, quando a reportagem acompanhou o trabalho dos Miquelussi. Ela buscava tomates maduros para o molho da massa que prepararia para amigos no dia seguinte.
Mas ser bom de conversa não basta ao feirante. Leandro ressalta que a qualidade dos produtos é essencial. "O freguês tem de ter confiança na gente. Se ele compra alguma coisa ruim, na próxima vez não volta." Portanto, além da mercadoria pega diretamente com os produtores, todos os dias Roberto passa no Ceasa para reforçar o estoque dos 95 itens que vende diariamente. Isso depois de já ter montado a barraca para descarregar as 90 caixas de produtos e montar a estrutura de metal de 7,5 metros por 2,5 metros os seis levam pouco mais de dez minutos.
Para agradar ainda mais a freguesia, os Miquilussi têm de ficar de olho também na tevê. Qualquer dica em programas de culinária ou mesmo nos noticiários e eles correm para reforçar a prateleira com um determinado produto. "Uma vez o Globo Repórter falou dos benefícios do nabo. No outro dia vendemos três caixas, sendo que é o que menos sai na banca: nem uma caixa por dia", atesta Leandro.
Jogo de cintura também faz diferença. Principalmente com descendentes de sírio-libaneses. "Eles pechincham até o último. Se aceitarmos a proposta deles, temos prejuízo", aponta Ricardo. Já os japoneses são os mais minuciosos. "Eles levam mais tempo para escolher, vêem cada detalhe", revela Leandro.
Roberto afirma que hoje as bancas são bem melhores e, apesar de ter um custo mais alto, as embalagens plásticas facilitam o trabalho. Antes o feirante tinha de lutar por jornal para embrulhar os produtos tanto que aceitava os exemplares velhos como moeda na hora da compra. "O quilo do jornal custava o equivalente a R$ 1. Mas quando faltava muito, a gente tinha que se sujeitar a pagar R$ 2, R$ 2,50, senão não tinha como trabalhar."
Apesar das mudanças, algumas tradições seguem intocáveis. Como o caderninho de fiado, que mesmo com a chegada das máquinas de pagamento a cartão, continuam presentes. "Se a freguesia ainda têm confiança na gente, por que a gente também não vai ter confiança neles, que são amigos de anos?", questiona Roberto. Eis o elo que impede a morte das feiras, inexistente nas prateleiras de supermercados.
Madrugada: hora de trabalhar
Os Miquilussi chegam às 3h20 à Rua Colombo, no Ahú, onde trabalham todas as quintas-feiras. No local onde fica a barraca deles, um dos produtores passou por volta das 2 horas e já deixou a carga de brocólis, espinafre, rúcula e repolho na calçada. Em dez minutos, a barraca está pronta. No total, 90 caixas de 95 itens são descarregadas do caminhão. Com a banca montada, Roseli, Leandro, Eunice e Tico começam a pôr em ordem as mercadorias nas prateleiras. Roberto e Ricardo vão ao Ceasa buscar mais produtos e voltam às 6h30, com o estoque completo.
Movimento
Chegam os primeiros fregueses. Uma delas é a bancária aposentada Lilian Bonfim, 51 (foto à esquerda). Há 20 anos ela compra legumes e verduras de Roberto. Quinta-feira ela procurava tomates maduros para fazer molho. No detalhe, a tecnologia chega às feiras: há um ano e meio as barracas disponibilizam máquinas de pagamento a cartão aos fregueses. Mesmo assim, o caderninho de fiado nunca deixou de existir.
Disque feira
Na era dos celulares, os fregueses não precisam mais ir à feira. Basta ligar e pedir. Tico leva a entrega de uma freguesa que mora em um prédio próximo.
Fim de feira
Às 11h27 os Miquilussi começam a desarmar a barraca. O dia não foi dos melhores. "O movimento foi baixo, mas a gente recupera outro dia", confia Roberto. A família recarrega o caminhão. Às 12h35 estão prontos para partir. Todos vão dormir depois do almoço menos Ricardo. À tarde, Roberto e Leandro vão pegar mais mercadoria para vender sexta-feira. Já Ricardo ainda ajuda o sogro na barraca de pastel na feira gastronômica do Água Verde, no fim da tarde. "Hoje não vou dormir quase nada", aponta o rapaz, que vai chegar em casa por volta da meia-noite e às 2 horas tem que estar de pé novamente.