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Responsável por realizar negociações e acordos bilionários, auditores do TCU e juristas acreditam que serviço não é competência do órgão.
Responsável por realizar negociações e acordos bilionários, auditores do TCU e juristas acreditam que serviço não é competência do órgão.| Foto: Samuel Figueira/TCU

O Tribunal de Contas da União (TCU) tem agido como um verdadeiro “balcão de negócios” do governo federal desde a criação da SecexConsenso. Com a nova secretaria, o TCU deixou de ser apenas um órgão fiscalizador e passou a intervir diretamente na gestão de contratos bilionários entre a administração pública — governo federal e agências estatais — e empresas privadas.

A procura pelo órgão aumentou consideravelmente para chancelar mudanças em contratos já estabelecidos ou elaborar acordos substitutivos em casos de sanção, como, por exemplo, pagamento de multas por serviço não prestado. Em alguns casos, administração pública e empresas privadas aparentam já terem negociado extraoficialmente, mas procuram o órgão para que haja a homologação da decisão.

“A função do TCU, como órgão auxiliar do Congresso Nacional, é fiscalizar. Não cabe ao TCU avalizar negociações e dar salvo-conduto em matérias que depois terá de fiscalizar. Em nenhum outro país do mundo o Tribunal de Contas faz isso. É um balcão de negócios, não há outra definição possível", afirma a deputada federal Adriana Ventura (Novo-SP). A diretoria nacional do partido Novo entrou com uma ação do Supremo Tribunal Federal (STF) para que a Corte avalie a constitucionalidade da secretaria.

TCU, que existe para ser fiscalizador isento, passa a interferir em contratos bilionários sem ser fiscalizado

Um dos acórdãos de consenso realizados pela SecexConsenso, em dezembro de 2023, envolveu contratos de energia de reserva que, somados, totalizavam R$ 11 bilhões por ano. Foi a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o Ministério de Minas e Energia (MME) que acionaram o TCU para realizar o consenso junto a empresa Karpowership Brasil Energia Ltda (KPS).

Entre os pontos da negociação, estava o de pagamento de multas e penalidades pela KPS. De acordo com a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) da Aneel, a empresa deveria pagar R$ 256 milhões em razão de multas relacionadas a irregularidades em editais e mais R$ 849 milhões por penalidades contratuais. No entanto, em vez de pagar os mais de R$ 1,1 bilhão inicialmente devidos, o acordo firmado na SecexConsenso reduziu o pagamento da KPS para cerca de R$ 336 milhões.

“O TCU é um órgão controlador, não um gestor. Quando atua nesse momento prévio de negociação, ele acaba assumindo um papel que, juridicamente, se assemelha ao de um administrador público. Isso acontece porque, ao chancelar um acordo, o TCU impõe seu próprio entendimento sobre a questão”, analisa Yasser Gabriel, doutor em direito público pela USP e professor de direito administrativo na FGV.

Gabriel explica que, além de atuar como mediador, o TCU, por meio da SecexConsenso, precisa aprovar ou rejeitar os termos estabelecidos pelas partes envolvidas no acordo. “No meu entendimento, algo que a administração pública poderia tratar discricionariamente, da forma como ela achasse que estava mais adequada ao interesse público, passa a ter o TCU, de alguma maneira, atuando em parte como o gestor na resolução dessa situação”, reforça.

É como se o TCU fosse um professor responsável por corrigir as provas dos alunos no final do semestre para garantir que todas as respostas estejam corretas. No entanto, no caso do TCU, não basta que as respostas estejam certas, elas também precisam agradar ao professor. Isso significa que o TCU, em vez de apenas revisar e fiscalizar os contratos para assegurar que estejam dentro das normas e do interesse público, se envolve nas negociações entre as partes, com a possibilidade de rejeitar decisões. Além desse envolvimento extrapolar as funções previstas para o TCU na Constituição, ele dá a possibilidade de ministros terem condutas antiéticas na avaliação dos contratos. O TCU foi criado apenas para ver se os contratos estão dentro da lei – quem deve analisar se as cláusulas são interessantes às partes do contrato são apenas as empresas e o poder público.

Constitucionalidade da SecexConsenso será analisada pelo STF

A Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos foi criada em 22 de dezembro de 2022, período em os órgãos públicos de Brasília já estão em clima de fim de ano. Quase dois anos após a sua criação, os riscos e problemas relacionados a essa nova função do TCU tornaram-se mais evidentes. A ADPF 1183, requerida pela diretoria nacional do Partido Novo, quer que o STF avalie a constitucionalidade da SecexConsenso.

“Se o TCU quer ser um agente de consenso é necessário que a Constituição e a lei outorguem esta competência a ele e delimitem o seu conteúdo”, critica Rodolfo Rebouças, advogado do Novo na ADPF 1183. "O ponto central desta ação é o debate sobre a autoatribuição de competências administrativas. Considerando que a Constituição e a lei não preveem esta função ao TCU ele pode autonomamente designar esta competência para si? Acreditamos que não”, complementa.

Uma pesquisa com auditores do próprio TCU revela que a grande maioria não vê positivamente a atuação do órgão em consensos. Para 62,8% dos auditores de controle externo, o TCU não deveria homologar negociações entre a administração pública e empresas privadas. Outros 24,3% acreditam que a instrução normativa que criou a SecexConsenso precisa ser aprimorada. Além disso, uma significativa maioria de 70,3% defende que haja total transparência para a sociedade nessas negociações conduzidas pelo órgão.

“Pensando pelos olhos do gestor, todos querem o controle prévio para mitigar os erros. Todavia, é importante primeiro apontar como este controle prévio será realizado e por que ele será realizado pelo TCU e não pela CGU, ou qualquer outra unidade de controle. Novamente, o modelo foi adotado unilateralmente por este órgão sem nenhum debate institucional no local apropriado, que é o Congresso”, aponta Rebouças.

Dos auditores entrevistados, 45,3% estão de acordo com o que apontou o Novo na ADPF 1183 ao afirmarem que o TCU não deveria desempenhar essa função de mediação por ser "absolutamente incompatível com as competências constitucionais" do órgão. Outras motivações para se posicionarem contra esse "novo papel" do TCU seriam a necessidade de autorização legal expressa para o desempenho dessa atribuição (22,3%) ou, mesmo que fosse considerada legal, a criação da secretaria não seria desejável pelos riscos envolvidos (6,8%).

AGU e TCU disputam poder em negociações

O jurista Yasser Gabriel alerta para o risco de criar uma cultura em que vejam o TCU como um órgão essencial para executar consensos entre o setor público e o privado. “Pode ser, eventualmente, prejudicial criar uma cultura para que toda vez que seja necessário resolver um problema ou fazer alguma alteração contratual, os administradores públicos sintam a necessidade de procurar o TCU para que o órgão determine se a resolução é adequada ou não”, avalia.

Possivelmente preocupado com esse risco, o presidente Lula publicou um decreto no último mês de julho para instituir a “Rede Federal de Mediação e Negociação”. Um dos dispositivos do decreto exigia que órgãos e entidades vinculados a União obtivessem autorização da Advocacia-Geral da União antes de iniciar processos de consenso no Tribunal de Contas. A AGU também deveria participar e oferecer assessoria jurídica nesses processos.

Com essas medidas, o governo Lula buscou exercer maior controle sobre os processos conduzidos pela SecexConsenso, uma vez que o sigilo ou a possibilidade de os órgãos procurarem diretamente o TCU poderiam dificultar o controle.

Presidente do TCU tem controle sobre pauta de negociações

No entanto, o decreto gerou insatisfação em Bruno Dantas, presidente do TCU. A agenda da SecexConsenso ficou suspensa durante as conversas entre governo Lula, AGU e TCU. Menos de um mês depois, o presidente Lula revogou os trechos que exigiam a presença da AGU nos processos consensuais realizados pelo TCU.

“Na questão prática, o que se verifica é a concentração de controle nas mãos do presidente do TCU. É ele quem decide qual questão será resolvida por consensualidade e qual não. E uma nação galgada no Estado de Direito não pode permitir uma situação como esta. Se estamos falando de consensualidade, primeiramente quem deve querer compor são as partes de maneira livre”, analisa Rebouças.

Segundo fontes internas do Tribunal, o principal problema identificado pelo TCU era a possibilidade de interpretação do decreto como uma exigência para que todos os processos de negociação envolvendo a União fossem conduzidos exclusivamente pela AGU. Pelo acordo, caberia a AGU retirar os dispositivos em troca da aceitação, por parte do TCU, da participação da Advocacia-Geral em todos os processos da SecexConsenso.Parte superior do formulário

A reportagem da Gazeta do Povo procurou o Tribunal de Contas da União para dar a oportunidade de responder às críticas recebidas. Porém, até o fechamento desta matéria, não houve retorno do órgão.

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