Desafio cotidiano
A saga de dois cegos e um cadeirante pelas ruas e prédios de Curitiba
O cadeirante José Leite passeou com a reportagem para apontar as dificuldades encontradas para se locomover com autonomia e segurança pelas ruas de Curitiba. Leite também é cego e convidou dois amigos cegos para o passeio, Luiz Fernando Vieira da Rocha e uma mulher que prefere não ser identificada.
Na chegada ao ponto de partida, no Terminal Guadalupe, ela bateu num orelhão que escapou ao radar da bengala. Bateu o rosto e acabou com um galo na testa e o nariz dolorido. "É tão simples colocar um piso tátil no chão alertando que ali tem um orelhão", ela lamenta.
Leite foi empurrado o tempo todo por um ajudante. Em alguns momentos, pretendia se locomover sozinho, mas logo desistia. A cadeira de rodas emperrava no degrau do meio-fio ou nos buracos. Ele tentou entrar no Detran, mas o declive da calçada era tão acentuado que a cadeira quase virou. "Já pensou naquelas pessoas que não podem contar com uma ajuda ou acompanhante? Não há autonomia alguma numa rua dessas."
Segundo o Detran, a agência da Rua João Negrão, onde Leite tentou entrar, tem uma entrada secundária no prédio vizinho para cadeirantes, ma não há essa informação na entrada. Já no Detran do Tarumã, o elevador acabou de ser consertado. Antes, um cadeirante precisava ser carregado no colo até o primeiro andar. O Ministério Público (MP) já cobrou as adaptações. Pelo diagnóstico, 108 unidades no Paraná precisam de reforma. As obras começam em 2013 e devem custar R$ 1,5 milhão.
Mais dificuldades
Leite tentou entrar no INSS, mas não conseguiu empurrar a cadeira até a entrada por causa da subida elevada. Não havia equipamentos básicos, como mapa e piso tátil e um painel sonoro para ouvir a senha de atendimento.
O grupo também foi ao Hospital de Clínicas (HC) da UFPR e se deparou com mais dificuldades. As calçadas são inadequadas, o estacionamento para cadeirante está irregular, em área de desnível. Escadas externas separam um prédio do outro. Para usar o elevador interno, o cego ou cadeirante tem de pedir permissão para entrar e depende da boa vontade do porteiro.
O HC também já foi alertado pelo MP para fazer as adaptações. Segundo o diretor-administrativo do hospital, Aristeu Negrão, a prefeitura tem um projeto de remodelação do entorno do hospital. "Hoje sabemos que um cadeirante só vai conseguir ter um atendimento melhor se chegar de carro. Se vir de ônibus, vai ter dificuldades", diz. O hospital tem banheiros adaptados, mas não tem piso tátil e funcionários que saibam Libras. A própria universidade poderia formar funcionários capacitados em Libras. "Falta boa vontade", resume Leite.
É direito básico de qualquer cidadão entrar livremente em lugares como a Receita Federal, o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) ou a Caixa Econômica Federal (CEF) para ter acesso aos serviços públicos. O que parece ser tão óbvio, porém, esbarra numa questão arquitetônica. Edifícios de órgãos federais não estão preparados para receber, por exemplo, um cadeirante como José Leite. No INSS de Curitiba, ele não consegue chegar nem à porta porque existe uma rampa com uma inclinação maior do que a permitida. A cadeira desliza e os braços não dão conta de fazer tanto esforço. Se não houver alguém para empurrá-lo, ele não entra.
JOGO: explore as dificuldades enfrentadas pelas pessoas com deficiência
VÍDEO: Veja o dia a dia de um cadeirante pelas ruas de Curitiba
A dura realidade enfrentada pelos deficientes físicos agora é provada em números. Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) confirma que a maioria dos edifícios públicos federais do país não tem as mínimas condições de acessibilidade. Além da Receita, INSS e CEF, também passaram pela análise os prédios dos Correios, do Ministério do Trabalho e Emprego e da Defensoria Pública da União. Nenhum tem acessibilidade total (alguns têm parcial) e, pior, grande parte não chega a ter nem requisitos básicos como rampa adequada, elevadores com braile, piso tátil (para cegos) e um atendente que saiba a Libras para receber um surdo/mudo.
Atraso e reprovação
O prazo para que fossem feitas as reformas necessárias era 2008, conforme o Decreto 5.296, de 2004, que exige adequação dos prédios públicos. Passados quatro anos, até agora nada ou muito pouco foi feito ou fiscalizado (existem ações isoladas dos Ministérios Públicos estaduais). Diante disso, o TCU decidiu agir. Primeiro fez e divulgou o relatório para comprovar a falta de acessibilidade nos órgãos que têm o maior fluxo de atendimento populacional de balcão.
A partir daí, vai exigir de todas as intituições públicas que as obras feitas de 2012 em diante com verbas federais sejam aprovadas apenas se estiverem dentro das exigências de acessibilidade da ABNT. E mais: a prestação de contas dessas instituições só será aprovada pelo Tribunal se apresentarem quais foram as medidas adotadas naquele exercício para implementar e melhorar ações de acessibilidade.
"Essas informações passam a ser de caráter obrigatório e a ausência delas será entendida como irregularidade na prestação de contas. O não cumprimento pode, inclusive, levar a uma responsabilização de ordem pessoal [de quem administra o órgão]. É claro que primeiro a ideia é dar uma caráter preventivo e orientar os gestores", explica o procurador do TCU Sergio Caribé.
Muito a fazer
O relatório foi elaborado por meio de questionários respondidos pelos gestores de cada instituição e representa 11.069 edificações onde funcionam a sede e as filiais dos seis órgãos brasileiros. A Caixa foi a que apresentou os melhores índices, apesar de ainda serem baixos: 67% das agências têm piso tátil, 92% têm banheiros adaptados e 63% têm elevadores com braile. Os Correios, por outro lado, só tem 28,6% das agências com banheiros adaptados.
O pior índice de todos os órgãos é a disponibilidade de um atendente capacitado em Libras: nem 5% das unidades dispõem de um servidor capacitado (veja tabela nesta página). Em resposta ao TCU, as instituições públicas confirmaram que não atendem integralmente aos requisitos de acessibilidade e outros disseram que não tinham, até então, um diagnóstico preciso de como estava essa questão.
"Os tribunais fiscalizavam, mas de maneira isolada, não havia uma atuação sistêmica até por falta de cultura. Passou da hora de isso ser um ponto essencial nas auditorias do Tribunal", afirma Caribé. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, com base no relatório, tem 180 dias para elaborar um plano de abrangência nacional que adapte as entidades pesquisadas.
Foco localInstituições do Paraná também são alvo de pesquisa
Em 15 dias, um estudo vai revelar as condições de acessibilidade nos prédios de órgãos públicos do Paraná. A pesquisa começou em março e já tem 500 páginas. Penitenciárias também foram analisadas sobre a mobilidade para deficientes físicos.
A intenção é estabelecer parcerias, inclusive com universidades públicas, que indiquem as reformas para adaptação. "Não queremos punir ninguém, mas orientar para que esses órgãos reservem uma parte do orçamento e promovam as adaptações necessárias. Eles poderão recorrer a diversas fontes de financiamento", explica o assessor jurídico da Secretaria de Justiça do Paraná (Seju), Miguel Godoy.
Apesar de o levantamento não ter a intenção de punir, Godoy lembra que os órgãos públicos em prédios não adaptados correm o risco, a qualquer momento, de ter de responder a uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público. "É lei e temos de cumprir. Além disso, não podemos mais admitir que os espaços públicos não sejam acessíveis", afirma. Cerca de 400 imóveis foram analisados no estado.
Vida e Cidadania | 1:50
Bastaram poucas voltas pelas ruas de Curitiba para que o cadeirante José Aparecido Leite descobrisse várias falhas de acessibilidade. Os problemas vão de calçadas quebradas a verdadeiras armadilhas para quem tem dificuldades de locomoção.
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