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Tensão indígena na aldeia global

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No imaginário do povo brasileiro, índio fica bem em fotos exóticas na Floresta Amazônica ou em um livro romântico de José de Alencar. Mas os conflitos recentes no norte gaúcho, que culminaram na morte de dois agricultores em uma área de disputa por terras com caingangues, voltaram a expor o dilema mais real e perverso de um país que há mais de 500 anos ainda busca descobrir qual é o lugar dos povos indígenas nesta pátria nem sempre tão gentil.

A realidade ecoou crua, com tiros, pedradas e pauladas. Dois irmãos foram abatidos no fim de abril ao tentarem furar o bloqueio de uma estrada em que indígenas protestavam pela demarcação de terras, na conflagrada Faxinalzinho, de 2,5 mil habitantes. Foi mais um capítulo em um cotidiano de tensão histórico, acirrado pelas oscilações do poder público na política de demarcação de terras em todo o território nacional.

Somente no norte do Rio Grande do Sul, são 14 focos de tensão por disputas territoriais, segundo estimativa do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) – e em pelo menos dez estados do país a situação é crítica. No Mato Grosso do Sul, o mais violento foco de conflitos com o agronegócio da soja e da cana-de-açúcar, o número de mortes de indígenas já passa de 300 desde 2004. No Paraná, pelo menos sete áreas são focos de tensão. Os maiores se concentram nas regiões Oeste e no Centro-Sul do estado.

Contraditória

Para o historiador da Faculdade Meridional (IMED) Henrique Kujawa, um dos autores do livro Conflitos Agrários no Norte Gaúcho: Índios, Negros e Colonos, as razões do tensionamento crescente recaem sobre nossa política indígena, historicamente contraditória. No início do século 20, inspirado pela lógica positivista, o governo de Borges de Medeiros foi pioneiro na demarcação de reservas, instituindo 11 áreas indígenas no norte do Rio Grande do Sul. A partir dos anos 1960, no governo Brizola, as mesmas reservas foram partidas em lotes e vendidas para agricultores. A partir de 1988, a Constituição Federal devolveu todas as áreas originárias aos indígenas, estipulando prazo de cinco anos para a regularização.

No Rio Grande do Sul, durante a década de 1990 foram restabelecidos os limites das áreas indígenas historicamente demarcadas, e os agricultores tiveram de sair das terras que haviam comprado nos anos 1960. Na última década, os indígenas passaram a reivindicar as terras ocupadas por agricultores no início do século 20. "Tanto indígenas como agricultores ficam como ioiôs, jogados de um lado para o outro. É todo um conjunto de conflitos pela posse das terras", observa Kujawa.

"Ser índio é mais do que usar cocar"

À medida que o índio deixa de se enquadrar no estereótipo idílico, aumenta o discurso de culpabilização por estarem "aculturados", como se, por usarem telefone celular ou energia elétrica, deixassem de ser índios. O que é considerado preconceito por estudiosos da cultura indígena.

"Ser índio é bem mais do que usar um cocar, é uma forma de entender o mundo. A gente come comida japonesa e não deixa de ser ocidental. Esse argumento de que eles não são mais índios serve para invalidar as reivindicações por terra, porque não seria culturalmente válido, e isso tem um fundo perverso, que anula a identidade do outro. Na Constituição está garantido que eles têm direito a terras, mas como se descaracteriza isso? Dizendo que não são mais índios", critica a professora Paula Caleffi, doutora em História pela Universidad Complutense de Madrid.

Ao vincular os indígenas a uma ideia de passado, o país deixaria de enfrentar o tema como parte do presente e do futuro do país. Presos a chavões, como a ideia de que o país dispõe de "muita terra para pouco índio", por exemplo, perderíamos a oportunidade de discutir a distribuição da terra. O pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da USP Spency Pimentel, professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), observa que 98,5% das terras destinadas a indígenas estão na Amazônia, enquanto 52% da população indígena vive fora dela, em 1,5% das áreas restantes.

Em meio a tantas teses, quem ouve o que representantes indígenas têm a dizer pode se surpreender. Indígena munduruku e conselheiro-executivo do Museu do Índio do Rio de Janeiro, o escritor Daniel Munduruku, que tem mestrado em Antropologia social e doutorado em Educação pela USP, questiona a própria definição de índio: "Chamar alguém de índio é desqualificar seu pertencimento a uma humanidade que foi sendo construída ao longo de milhares de anos. Este é um termo que diminui, que vem sendo usado pelo sistema econômico para facilitar o estereótipo e assim construir uma imagem negativa da cultura indígena. O grande papel é mostrar que se pode ter tudo, sem deixar de ser o que se é". Em pleno século 21, os índios ainda procuram seu quinhão na aldeia global.

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