Uma resolução que facilita o aborto em crianças e adolescentes vítimas de estupro, até 9 meses de gestação, e que quase foi aprovada durante reunião marcada em cima da hora na última segunda-feira (2) é inconstitucional. A afirmação é de diversos especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, que apontam falhas no texto da normativa e inobservância das funções estabelecidas para o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
“Como órgão administrativo, o Conanda pode emitir normas para regulamentar situações descritas em lei, mas não pode se opor à legislação ou criar novas hipóteses”, explica o advogado Alessandro Chiarottino, professor de Direito Constitucional e doutor em Direito pela USP, ao explicar que as normas criadas pelo órgão têm caráter infralegal, ou seja, “sem força de lei”.
No entanto, o órgão tenta facilitar o aborto em crianças e adolescentes vítimas de estupro, prevendo, por exemplo, que o procedimento seja realizado sem consentimento ou conhecimento dos pais da gestante.
Segundo a advogada Juliana Pereira, especializada em Direito Civil e Direito de Família, isso fere a “integridade emocional e psicológica”, pois permite que “uma criança ou adolescente vítima de violência possa decidir pela prática de um aborto legal”, contrariando o Código Civil.
Pela Lei, “até os 16 anos de idade, qualquer pessoa é considerada absolutamente incapaz para a prática de atos da vida civil e deve ser representada por seus pais ou tutores legais”, explica a advogada familiarista, que também é professora mestre em Direito.
De acordo com ela, “o próprio direito de família estabelece que a idade mínima para casamento é de 16 anos, e sempre com autorização dos pais ou responsáveis”, argumenta, ao apontar “que o direito protege a criança de decisões precipitadas, levando em conta a falta de maturidade psicológica para tomar decisões que afetem sua vida de forma irreversível”.
A advogada alerta, portanto, que essa resolução coloca meninas de até 14 anos em “situação de extrema vulnerabilidade”, pois “o direito à convivência familiar e comunitária, previsto no artigo 227 da Constituição Federal, visa justamente assegurar que decisões tão sérias sejam tomadas de forma protegida”, diz, ao citar a “presença e auxílio de uma rede de apoio que envolva família, profissionais capacitados e, se necessário, a própria sociedade”.
Resolução traz outros pontos que contrariam legislação vigente
O professor Vander Ferreira de Andrade, mestre e doutor em direito do Estado pela PUC-SP, também alerta para a retirada de direitos dos pais em uma decisão tão importante que envolva crianças e adolescentes, e caracteriza a situação como “uma violência do Estado, jamais vista anteriormente”.
Outro aspecto crítico da resolução, segundo ele, é a tentativa de fazer com que plantões de hospitais e postos de saúde tenham somente médicos que aceitem realizar o procedimento de aborto.
Segundo o texto do Conanda, deve ser evitada a presença de “profissionais objetores de consciência” em equipes destinadas à prestação do serviço de interrupção legal da gravidez, o que Andrade aponta como “absolutamente inconstitucional”, pois viola a liberdade de pensamento e a liberdade religiosa, já que, muitas vezes, a objeção de consciência tem fundamento moral, religioso e de foro íntimo.
O texto do Conanda, inclusive, cita que a recusa em “cumprir uma obrigação legal com base em convicções morais, políticas, religiosas e crenças pessoais deve ser denunciada aos conselhos de fiscalização profissional, aos conselhos de direitos e ao Ministério Público”.
“Isso faz com que médicos não possam alegar objeção de consciência”, aponta o doutor em Direito de Estado, pontuando que o juramento de Hipócrates, celebrado por todos os médicos para guiar suas ações profissionais, visa proteger a vida humana desde seu início.
Com isso, o jurista alerta ainda sobre o fato de a resolução prever o aborto em qualquer fase da gestação, inclusive aos nove meses, quando o bebê já tem total viabilidade de desenvolvimento. “Mas a recomendação clássica dos médicos para o aborto é que ocorra nos primeiros meses da concepção, nos casos previstos no artigo 128 do Código Penal.”
O que acontece se a Resolução do aborto for aprovada?
Conforme a reunião extraordinária do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente realizada na última segunda-feira (2), transmitida ao vivo pelo Youtube, o tema deve ser retomado para discussão em 23 de dezembro – com possibilidade de adiantamento para os dias 11 e 12. O objetivo é que a proposta seja votada antes da virada de ano e da mudança de conselheiros.
Caso seja votada da forma que está, o doutor em Direito pela USP, Alessandro Chiarottino, explica que podem ser apresentados diversos recursos, como um mandado de segurança coletivo. Ele cita ainda que “os atos normativos do Conanda estão sujeitos ao controle dos Poderes Legislativo e Judiciário, especialmente para verificar sua conformidade com a lei e com os princípios constitucionais”.
O professor Vander Ferreira de Andrade também aponta que o Ministério Público (MP), associações e demais instituições que defendam os direitos fundamentais podem declarar a inconstitucionalidade da resolução. “Lembrando que a norma não deverá ser acatada pela polícia, por hospitais públicos e por nenhum agente público, porque ordem emanada de norma inconstitucional não deve ser cumprida”, explica.
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